quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Protestar contra a Copa do Mundo? Não, obrigado.

http://blogdothales.sul21.com.br/2014/01/protestar-contra-a-copa-do-mundo-nao-obrigado/


Esses dias estava passando pelo largo da Epatur, em Porto Alegre, e me deparei com um cartaz do movimento anarquista que dizia: Não vai ter copa.

Além disso, vejo com certa frequência aqueles chavões bizarros (“imagina na Copa”) que já pegaram, são ditos aos quilos e estão inseridos no odioso senso comum de parte da população brasileira.

A principal crítica se refere aos vultuosos gastos com a organização do evento, de aproximadamente R$ 28 bilhões, como se todo esse dinheiro fosse utilizado única e exclusivamente para a construção de estádios.

Vamos fazer uma leve discriminação desses 28 bilhões:

R$ 8,9 bilhões estão sendo gastos em obras de mobilidade urbana, como a construção de BRT’s, metrôs e melhorias no transporte público;

R$ 8,4 bilhões em aeroportos.

R$ 1,9 bilhão em segurança.

R$ 7,5 bilhões serão gastos em estádios;

R$ 1,3 será investido em desenvolvimento turístico, portos, telecomunicações e etc.

Ou seja, dos R$ 28 bilhões gastos/investidos com a Copa, a maior parte será utilizado em obras que serão de grande utilidade para a população.

Do total, R$ 5,6 bi são de investimentos privados, o que reduziria a utilização de recursos públicos, a título de financiamento ou gasto, para cerca de R$ 22 bilhões.

Mas a copa do mundo não é só despesa. Muito pelo contrário, é um investimento muito lucrativo para o país (e para as grandes empresas, é claro), tanto no aspecto financeiro quanto nas questões que transcendem às questões econômicas.

De acordo com estudos realizados por instituições como a FGV e Ernest Young, a Copa do Mundo dará um retorno financeiro que poderá variar entre R$ 142 e 183 bilhões de reais entre geração de emprego, turismo, impostos, consumo e etc. Investe 28 e retorna 180. Mau negócio?

Fugindo das questões financeiras, esses mesmos estudos apontam que a Copa trará maior visibilidade internacional do Brasil, com a consolidação da imagem do país no exterior, reconhecimento pela capacidade de organizar um evento desse porte, maior exposição de produtos e serviços para o mundo e maior aproveitamento do potencial turístico, além do fortalecimento da alta estima da população brasileira, a exemplo do que ocorreu em países anfitriões das últimas edições, como a África do Sul e, principalmente, a Alemanha em 2006. Essa última merece uma atenção especial nesse sentido.

Esses dias estava assistindo um documentário norte-americano sobre Resistência Alemã, com enfoque na famosa e fracassada Operação Valquíria. Nesse documentário, além de contar detalhes dos movimentos de resistência, falou-se de um tema complicado no qual o povo alemão enfrentou no pós-guerra, pelo menos até 2006 com a realização da Copa do Mundo na Alemanha, que é a da sua alta estima dizimada pelas bizarrices nazistas da 2ª guerra mundial.

Até então, qualquer demonstração de patriotismo era vista como algo negativo (não que não seja em alguns casos) em razão da vergonha que a maioria do povo alemão sentia e sente pelo passado de atrocidades praticadas pelos Nazistas. Se nós entoarmos por aí o famoso eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor, não teremos qualquer problema com isso. Já na Alemanha, existem até mesmo movimentos para mudar o Deutschlandlied, o Hino Nacional da Alemanha, em razão de entenderem que uma de suas estrofes “Deutschland, Deutschland, über alles” (Alemanha, Alemanha, acima de tudo) exacerba o nacionalismo, além do fato de que essa exaltação ter sido (e ser) muito popular entre os nazistas (e neonazistas).

Esse é um dilema que o povo alemão enfrenta – Se eu for alemão demais vão pensar que sou nazista –  e que a realização da Copa do Mundo no país ajudou e ajuda a superar e que, de acordo com o professor de História Contemporânea da Universidade de Berlim, Paul Nolte, “esse orgulho não tem precedente no passado recente. A nova geração não tem vergonha de ser patriota”.

A nossa eterna síndrome de vira-latas também vai nesse sentido e é possível que acabe, ou diminua, se realizarmos uma grande Copa do Mundo, apesar da enorme torcida contrária de alguns.

Ao contrário do que esse texto pode parecer, não acho que as críticas à realização da Copa sejam inúteis ou infundadas. As desapropriações de imóveis em periferias para a realização de algumas obras foram ilegais e truculentas. Não discordo nem minimizo esses fatos. Essa questão foi muito mal conduzida e planejada pelos prefeitos das cidades sedes e estes deveriam responder pelo crime de responsabilidade.

Alguns gastos podem ter sido superfaturados. Porém, os Tribunais de Contas e o Ministério Público devem exercer suas funções constitucionais para investigar autuar e punir qualquer conduta ilegal.

A corrupção é um problema crônico em nosso país. Não tenho como afirmar mas, como disse anteriormente, é provável que haja algum superfaturamento das obras da copa. Porém, sendo assim, toda e qualquer obra ou serviço público deveria ser alvo de protestos pois, independente da realização da Copa, sempre houve e sempre haverá corrupção no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. Não é exclusividade nossa.

E o problema não é a Copa do Mundo, é o sistema como um todo.

Protestar contra a Copa (ou seus gastos), nessa altura do campeonato, é insano para quem diz que se preocupa justamente com dinheiro público. E ela já está aí, não há como voltar atrás.

Mas, supondo que se volte atrás e que o Brasil não realize a copa. Já pensaram no enorme prejuízo que seria dado aos cofres públicos? Aí sim seria dinheiro posto fora e nenhum real dos quase R$ 200 bi previstos retornaria ao país.

O momento histórico de ser contra  já passou. O Brasil se candidatou como sede da Copa do Mundo no ano de 2003. Ou seja, há 11 anos.  A Suíça pensou em ser sede dos Jogos Olímpicos de 2022 e o povo de lá foi contra. Resultado?  Retiraram a candidatura.

É quase a mesma coisa de ser contra a contratação de determinado jogador para o seu time. Depois que assinou o contrato, amigo, é apoiar e torcer que o Perivaldo vire Pelé.

Mas isso tem explicação. Alguns movimentos ligados ao campo da esquerda mais sectária em conjunto com setores da grande imprensa, andam de mãos dadas, ainda que não saibam disso (ou saibam) com o claro intuito de desestabilizar o Governo Federal visando as eleições de outubro. A Copa do Mundo é apenas um pretexto.

A maioria da população, mesmo com os protestos, apoia a realização da Copa do Mundo no Brasil, ainda que esse apoio tenha diminuído com as manifestações do ano passado.

Protestar contra a Copa? Não, obrigado.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Fascismo à brasileira

http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/01/fascismo-brasileira.html


Parece crescente e cada vez mais evidente no Brasil que importantes setores da classe média e classe alta simpatizam com ideais semelhantes aos que formaram o caldeirão social do fascismo

Historicamente a adesão inicial ao fascismo foi um fenômeno típico das classes dominantes desesperadas e das classes médias empobrecidas e apenas pontualmente conquistou os estratos mais baixos da sociedade, ideologicamente dominados pelo trabalhismo social-democrata ou pelo comunismo. Nos mais diversos cantos do mundo, dos nazistas na Alemanha e camisas-negras na Itália, aos integralistas brasileiros e caudilhistas espanhóis seguidores de Franco, as classes médias, empobrecidas pelas sucessivas crises do pós-guerra (1921 e especialmente 1929), formaram o núcleo duro dos movimentos fascistas.

Esse alinhamento ao fascismo teve como fundo principal uma profunda descrença na política, no jogo de alianças e negociatas da democracia liberal e na sua incapacidade de solucionar as crises agudas que seguiam ao longo dos anos 1910, 20 e 30. Enquanto as democracias liberais estavam estáveis e em situação econômica favorável, com certo nível de emprego e renda, os movimentos fascistas foram minguados e pontuais, muito fracos em termos de adesão se comparados aos movimentos comunistas da mesma época. Porém, uma vez que a democracia liberal e sua ortodoxia econômica mostraram uma gritante fraqueza e falta de decisão diante do aprofundamento da crise econômica nos anos 1920 e 30, a população se radicalizou e clamou por mudanças e ação.

Lembremos que, quando os nazistas foram eleitos em 1932, a votação foi bastante radical se comparada aos pleitos anteriores; 85% dos votos dos eleitores alemães foram para partidos até então considerados mais radicais, a saber, Socialistas (social-democracia), Comunistas e Nazistas (nacional-socialistas), os dois primeiros à esquerda e o último à direita. Os conservadores ortodoxos, anteriormente no poder, estavam perdidos em seu continuísmo e indecisão, sem saber o que fazer da economia e às vezes até piorando a situação, como foi o caso da Áustria até 1938, completamente estagnada e sem soluções para sair da crise e do desemprego, refém da ortodoxia de pensadores da escola austríaca, tornando-se terreno fértil para o radicalismo nazista (que havia fracassado em 1934).

Além disso, o fascismo se apresentava como profundamente anticomunista, o que, do ponto de vista das classes dominantes mais abastadas e classes médias mais estáveis (proprietárias) menos afetadas pelas crises, era uma salvaguarda ideológica, pois o “Perigo Vermelho”, isto é, o medo de que os comunistas poderiam de fato tomar o poder, era um temor bastante real que a democracia liberal parecia incapaz de “resolver” pelos seus tradicionais métodos, especialmente após a crise de 1929. O fascismo desta maneira se apresentou como último refúgio dos conservadores (sejam de classe média ou da elite) contra o socialismo. Os intelectuais que influenciavam os setores sociais menos simpáticos ao fascismo, o viam como um mal menor “temporário” para proteger a “boa sociedade” das “barbáries socialistas”, como o guru liberal Ludwig von Mises colocou, reconhecendo a fraqueza da democracia liberal face ao “problema comunista”:

Não pode ser negado que o Fascismo e movimentos similares que miram no estabelecimento de ditaduras estão cheios das melhores intenções e que suas intervenções, no momento, salvaram a civilização européia. O mérito que o Fascismo ganhou por isso viverá eternamente na história. Mas apesar de sua política ter trazido salvação para o momento, não é do tipo que pode trazer sucesso contínuo. Fascismo é uma mudança de emergência. Ver como algo mais que isso, seria um erro fatal. (L. von Mises, Liberalism, 1985[1927], Cap. 1, p. 47)

Além da descrença na política tradicional e do temor do perigo vermelho num cenário de crise, houve ainda uma razão fundamental para as classes médias adentrarem as fileiras do fascismo: o medo do empobrecimento e a perda do status social.

Esse sentimento – chamado de declassemént ou declassê no aportuguesado, algo como ”deixar de ser alguém de classe” – remetia ao medo de se proletarizar e viver a vida miserável que os trabalhadores, maior parte da população, viviam naquela época. Geralmente associava-se ao receio de que o prestígio social ou o reconhecimento social por sua posição econômica esmorecessem, mesmo para pequenos proprietários e profissionais liberais sem títulos de nobreza (ver Norbet Elias, Os Alemães). Esse medo entra ainda no contexto de uma evidente rejeição republicana, uma reação conservadora do etos nobiliárquico que dominava as classes altas e parte das classes médias urbanas nos países fascistas, à consolidação dos ideais liberais (mais igualitários) na estrutura social de poder e de privilégios, isto é, na tradição social aristocrática. Não foi por acaso que o fascismo foi uma força política exatamente onde os ideais liberais jamais haviam se arraigado, como Itália, Espanha, Portugal, Alemanha e Brasil.

Por fim, cumpre lembrar que os fascistas apelam à violência como forma de ação política. Como disse Mussolini: “Apenas a guerra eleva a energia humana a sua mais alta tensão e coloca o selo de nobreza nas pessoas que têm a coragem de fazê-la” (Doutrina do Fascismo, 1932, p. 7). A perseguição sem julgamento, campos de trabalho e autoritarismo não só vieram na prática muito antes do genocídio e da guerra, mas também já estavam em suas palavras muito antes de acontecerem. No discurso e na prática, a sociedade é (ou destina-se) apenas para aqueles que o fascista identifica como adequados; há um evidente elitismo e senso de pertencimento “correto” e “verdadeiro”, seja uma concepção de nação ou de identidade de raça ou grupo. E essa identidade “verdadeira” será estabelecida à força se preciso.

Mas porque estamos falando disso?

Parece crescente e cada vez mais evidente no Brasil que importantes setores da classe média e classe alta simpatizam com ideais semelhantes  aos que formaram o caldeirão social do fascismo?


Vimos em texto recente que a sociedade brasileira, em particular a classe média tradicional e a elite, carrega fortes sentimentos anti-republicanos (ou anticonstitucionais), herdados de nossa sucessão de classes dominantes sem conflito e mudança estrutural, sem qualquer alteração substancial de sua posição material e política, perpetuando suas crenças e cultura de Antigo Regime. Privilégios conquistados por herança ou “na amizade”, contatos pessoais, indicações, nepotismos, fiscalização seletiva e personalista; são todas marcas tradicionais de nossa cultura política. A lei aqui “não pega”, do mesmo jeito que para nazistas a palavra pessoal era mais importante que a lei. Há um paralelo assustador entre a teoria do fuhrerprinzip e a prática da pequena autoridade coronelista, à revelia da lei escrita, presente no Brasil.

Talvez por isso, também tenhamos, como a base social do fascismo de antigamente, uma profunda descrença na política e nos políticos. Enojada pelo jogo sujo da política tradicional, das trocas de favores entre empresas e políticos, como o caso do Trensalão ou entre políticos e políticos, como os casos dos mensalões nos mais variados partidos, a classe média tradicional brasileira se ilude com aventuras políticas onde a política parece ausente, como no governo militar ou na tecnocracia de governos de técnicos administrativos neoliberais. Ambos altamente políticos, com sua agenda definida, seus interesses de classe e poder, igualmente corruptos e escusos, mas suficientemente mascarados em discursos apolíticos e propaganda, seja pelo tecnicismo neoliberal ou pelo nacionalismo vazio dos protofascistas de 1964, levando incautos e ingênuos a segui-los como “nova política” messiânica que vai limpar tudo que havia de ruim anteriormente

Por sua vez, como terceiro ponto em comum, partes das classes médias tradicionais e a elite tem um ódio encarnado de “comunistas”, e basta ler os “bastiões intelectuais” da elite brasileira, como Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino ou Olavo de Carvalho ou mesmo porta-vozes do soft power do neoconservadorismo brasileiro, como Lobão e Rachel Sherazade. É curioso que o mais radical deles, Olavo de Carvalho, enxergue “marxismo cultural” em gente como George Soros (mega-especulador capitalista), associando-o ao movimento comunista internacional para subjugar o mundo cristão ocidental. Esse argumento em essência é basicamente o mesmo de Adolf Hitler: o marxismo e o capital financeiro internacional estão combinados para destruir a nação alemã (Mein Kampf, 2001[1925], p. 160, 176 e 181).

A violência fascista, por sua vez, é apresentada na escalada de repressão punitivista e repressora do Estado, apesar de – ainda – ser menos brutal que o culto à guerra dos fascistas dos anos 1920 e 30. Antes restritos apenas aos programas sensacionalistas de tv sobre violência urbana e aos apologistas da ditadura como Jair Bolsonaro, o discurso violento proto-fascista “bandido bom é bandido morto”, que clama por uma escalada de repressão punitiva, sai do campo tradicionalmente duro da extrema direita e se alinha ao pensamento de economistas liberais neoconservadores que consideram que “o criminoso faz um cálculo antes de cometer seu crime, então é o caso de elevar constantemente o preço do crime (penas intermináveis, assédio, execuções), na esperança de levar aqueles que sentirem tentados à conclusão de que o crime já não compensa” (Serge Hamili, 2013). Assim, a apologia repressora se alinha à lógica do punitivismo mercantil de apologistas do mercado, mimetizando um Chile de Pinochet onde um duríssimo estado repressor, anticomunista, está alinhado com o discurso  neoliberal mais radical.


E, ainda, somam-se a isso tudo o classismo e o racismo elitista evidentes de nossa “alta” sociedade. Da “gente diferenciada” que não pode frequentar Higienópolis, passando pelo humor rasteiro de um Gentili, ou o explícito e constrangedor classismo de Rachel Sherazade, que se assemelha à “pioneira revolta” de Luiz Carlos Prates ao constatar que “qualquer miserável pode ter um carro”, culminando com o mais vergonhoso atraso de Rodrigo Constantino em sua recente coluna, mostrando que nossos liberais estão mais inspirados por Arthur de Gobineau e Herbert Spencer do que Adam Smith ou Thomas Jefferson. A elite e a classe média tradicional (que segue o etos da primeira), não têm mais vergonha de expor sua crença no direito natural de governar e dominar os pobres, no “mandato histórico” da aristocracia sobre a patuléia brasileira. O darwinismo social vai deixando o submundo envergonhado da extrema direita para entrar nos nossos televisores diariamente.

Assim, com uma profunda descrença na política tradicional e no parlamento, somada a um anti-republicanismo dos privilégios de classe e herança, temperados por um anticomunismo irracional sob auspícios de um darwinismo social histórico e latente, aliado a uma escalada punitivista alinhada a “ciência” econômica neoliberal, temos uma receita perigosa para um neofascismo à brasileira. Porém, antes que corramos para as montanhas, falta um elemento fundamental para que esse caldeirão social desemboque em prática neofascista real: crise econômica profunda.

Apesar do terrorismo midiático, nossa sociedade não está em crise econômica grave que justifique esta radicalização filo-fascista recente. Pela primeira vez em décadas, o país vive certo otimismo econômico e, enquanto no final dos anos 1990, um em cada cinco brasileiros estava abaixo da linha da pobreza, hoje este número é um em cada 11. A Petrobrás não só não vai quebrar como captou bilhões recentemente. A classe média nunca viajou, gastou no exterior e comprou tanto quanto hoje, nem mesmo no auge insano do Real valendo 0,52 centavos de dólar. O otimismo brasileiro está muito acima da média mundial, mesmo que abaixo das taxas dos anos anteriores.

No entanto, apesar de tudo isso, parte das antigas classes médias e elites continuam se radicalizando à extrema direita, dando seguidos exemplos de racismo, intolerância, elitismo, suporte ao punitivismo sanguinário das polícias militares, aplaudindo a repressão a manifestações e indiferentes a pobres sendo presos por serem pobres e negros em shopping centers. Isso tudo com aquela saudade da ditadura permeando todo o discurso. Se não há o evidente declassmént, o empobrecimento econômico, ou mesmo um medo real do mesmo, como explicar esta radicalização protofascista?

Não é possível que apenas o tradicional anti-republicanismo, o conservadorismo anti-esquerdista e o senso de superioridade de nossas elites e classes médias tradicionais sejam suficientes para esta radicalização, pois estes fatores já existiam antes e não desencadeavam tamanha excrescência fascistóide pública.

Não.

O Brasil vive um fenômeno estranho. As classes médias tradicionais e elite estão gradualmente se radicalizando à extrema direita muito mais por uma sensação de declassmént do que por uma proletarização de fato, causada por alguma crise econômica. Esta sensação vem, não do empobrecimento das classes médias tradicionais (longe disso), mas por uma ascensão econômica das classes historicamente subalternas. Uma ascensão visível. Seja quando pobres compram carros com prestações a perder de vista; frequentam universidades antes dominadas majoritariamente por ricos brancos; ou jovens “diferenciados” e barulhentos frequentam shoppings de classe média, mesmo que seja para olhar a “ostentação”; ou ainda famílias antes excluídas lotando aeroportos para visitar parentes em toda parte.

Nossa elite e antiga classe média cultivaram por tanto tempo a sua pretensa superioridade cultural e evidente superioridade econômica, seu sangue-azul e posição social histórica; a sua situação material foi por tanto tão sem paralelo num dos mais desiguais países do mundo, que a mera percepção de que um anteriormente pobre pode ter hábitos de consumo e culturais similares aos dela, gera um asco e uma rejeição tremenda. Estes setores tradicionais, tão conservadores que são, tão elitistas e mal acostumados que são, rejeitam em tal grau as classes historicamente humilhadas e excluídas, “a gente diferenciada” que deveria ter como destino apenas à resignação subalterna (“o seu lugar”), que a ascensão destes “inferiores” faz aflorar todo o ranço elitista que permanecia oculto ou disfarçado em anti-esquerdismo ou em valores familiares conservadores. Não há mais máscara, a elite e a classe média tradicional estão mais e mais fazendo coro com os históricos setores neofascistas, racistas e pró-ditadura. Elas temem não o seu empobrecimento de fato, mas a perda de sua posição social histórica e, talvez no fundo, a antiga classe média teme constatar que sempre foi pobre em relação à elite que bajula, e enquanto havia miseráveis a perder de vista, sua impotência política e vazio social, eram ao menos suportáveis.

*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve mensalmente para Pragmatismo Politico. (riorevolta@gmail.com)

Texto revisado por Carolina Dias

REFERÊNCIAS GERAIS:

ELIAS, Norbert. Os Alemães. Rio de Janeiro: Zahar, 1996

HAMILI, Serge. O laissez faire é libertário?. IN: Le Monde Diplomatique Brasil, número 71, 2013.

HITLER, Adolf. Mein Kampf. São Paulo: Centauro, 1925

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Cia das Letras,1996

MISES, Ludwig von. Liberalism.Irvington.The Foundation for Economic Education, 1985

MUSSOLINI, Benito. Doctrine of Fascism. Online World Future Fund. 1932

POULANTZAS, Nicos. Fascismo e Ditadura. Porto: Portucalense, 1972

SCHMIT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006

sábado, 25 de janeiro de 2014

O Brasil segundo o presidente do Bradesco

http://www.cartamaior.com.br/?%2FEditorial%2FBrasil-Poupe-me-%2F30077


Foi preciso que o presidente de um dos maiores bancos brasileiros viajasse 8.940 kms para fora do país, um estirão aéreo de  11 hs  até Genebra, na Suíça, para encontrar um jornalista, o competente Assis Moreira, correspondente do Valor Econômico, disposto a ouvir e reportar  uma visão  da economia  ausente na pauta  do Brasil aos cacos,  que predomina nas páginas  do seu próprio jornal.

Que isso tenha acontecido na carimbada paisagem de neve e ternos pretos de Davos, onde se realiza o concílio das corporações capitalistas,  diz algo sobre  o belicismo da emissão conservadora em  azedar  as expectativas  contra o Brasil e seu desenvolvimento.

Luiz Carlos Trabuco Cappio, presidente do Bradesco, não dirige uma instituição socialista.

Segundo maior banco do país, o Bradesco  acumulou até o 3º trimestre de 2013 um lucro  da ordem de R$  9 bilhões, em boa parte pastejando tarifas e juros no lombo de seus clientes.

Até aí,  estamos na norma de um setor que  ao primeiro alarme da crise mundial deixou o Brasil falando sozinho.

Recolheu-se ao bunker dos  títulos públicos (juro limpo, risco zero de inadimplência) e deixou o pau quebrar do lado de fora.

Mais de 50% do financiamento da economia brasileira hoje é garantido pelos bancos estatais –  15  pontos acima do padrão de mercado pré-crise.

Não dispusesse  de um  sistema de bancos estatais, o país seria  arrastado à crise pela vocação  pró-cíclica da lógica financeira.

O Bradesco tem 26 milhões de correntistas; está espalhado por todo o Brasil  –sua rede de oito mil agências talvez só perca para a do Banco do Brasil.

Um dos segmentos de maior  expansão do banco  no ano passado  foi a carteira  imobiliária: o financiamento de imóveis  totalizou  R$ 12,5 bi –crescimento de 33% no período, contra 11% do credito em geral.

Talvez essa capilaridade explique a dissonância.

O que disse Trabuco, em Genebra,  destoa da água para o vinho dos clamores emitidos pela república rentista, aferrada a circularidade do lucro que não passa pela produção, nem pelo consumo.

No cassino, a regra de ouro é o descompromisso com a sorte do desenvolvimento e o destino da sociedade  –não raro, o confronto, em modalidades conhecidas.

A saber: arbitragem de juros (leia ‘O governo invisível não quer Dilma’; neste blog), especulação  com papelaria e moedas (bolsas, volatilidade cambial) e imposição de  Selic gorda no financiamento da dívida pública.

Até mesmo pelo maior  entrelaçamento  geográfico  com o país real (se o Brasil der errado isso tem consequências) o dirigente do Bradesco se obriga a um outra visão da economia e do governo.

Excertos da sua entrevista a Assis Moreira soam como mensagens de um marciano  em meio ao alarido do rentismo  local:

(...) ‘O grande desafio que nós temos é fazer o capital produzir no Brasil. É fazer o investimento estrangeiro ou capital privado nacional funcionar para suprir os nossos fossos, principalmente de infraestrutura. O Brasil não é um país pobre, é um país desigual. Não é um país improdutivo. Nós temos problema de competitividade, mas o país é produtivo’.

(...) ‘ninguém quer ficar fora do Brasil. Porque a democracia brasileira, o Judiciário, as instituições, a harmonia social, independente dos problemas que possam existir, tem uma coesão. O Brasil tem um projeto de país’.

(...) ‘Houve uma época na economia brasileira em que tudo estava no curto prazo. Agora, teve um alongamento. E foi positivo, porque o governo soube aproveitar isso, que foi o alongamento da dívida interna. Hoje já temos estoques  importante de títulos de 2045, de 2050’.

(...) ‘O relatório do FMI foi até positivo em alguns aspectos, porque olhou para a economia brasileira e viu um crescimento superior à média da projeção dos economistas brasileiros. Isso é o reconhecimento da capacidade do PIB potencial.

Com relação ao movimento de capitais, o FMI falou genericamente, sobre migração [de capital]. O pior dos mundos seria um cenário em que os Estados Unidos, Europa e Ásia mudassem o patamar dos juros, aí teríamos... Acho que a fuga de capital no Brasil não se aplica’.


Isso na 4ª feira. Um dia antes,  o mesmo jornal debruçava-se no colo do mercado financeiro para anunciar a rejeição  do governo invisível  do dinheiro  à reeleição de Dilma.

A dificuldade em pensar o Brasil advém, muito, da inexistência de um espaço ecumênico  de debate em que opiniões como a de um Trabuco,  ou a  de Luiza Trajano  --a dona do  Magazine Luiza, que desancou ao vivo um gabola desinformado do pelotão conservador--   deixem de ser um acorde dissonante no jogral que diuturnamente aterroriza:  de amanhã o Brasil não passa.

Os desafios ao passo seguinte do desenvolvimento brasileiro são reais.

De modo muito grosseiro, trata-se de modular um ciclo de ganhos de produtividade (daí a importância  de resgatar seu principal núcleo irradiador, a indústria)  que financie  novos degraus de acesso  à cidadania plena.

A força e o consentimento necessários para conduzir  esse  novo ciclo requisitam um salto de discernimento e organização social,  indissociável de um amplo debate sobre metas,  ganhos, prazos, sacrifícios  e valores.

 Não se trata apenas de sobreviver  à convalescência do modelo neoliberal.

Trata-se de distinguir  se a crise global é uma ruptura ou o desdobramento  natural de um modelo cuja restauração é defendida  por rentistas, jornalistas e rapazes assertivos, desprovidos do recheio competente.

Antes de classificar como excrescência o que se assiste na Europa  --onde o ajuste neoliberal  produziu  26,5 milhões de desempregados, implodiu pilares da civilização e acumula déficits paralisantes, que a recessão ‘saneadora’ não permite deflacionar--,  talvez fosse mais justo creditar à razia o bônus da coerência.

O que o schumpeterismo ortodoxo  promove  no antigo berço do Estado do Bem- Estar Social é radicalização do processo de ‘destruição criativa’ que por três décadas esganou  o rendimento do trabalho, sacrificou soberanias, instituições e direitos, simultaneamente  a concessão de mimos tributários aos endinheirados.

Para clarear as coisas: não foi a crise que gerou o arrocho e a pobreza em desfile no planeta --mas sim o arrocho e a desigualdade neoliberal que conduziram ao desfecho explosivo, edulcorado agora por  vulgarizadores que, no Brasil,  advogam  dobrar a aposta no veneno.

A ordem dos fatores altera a agenda futuro.

Se a crise não é apenas financeira, controlar as finanças desreguladas é só um pedaço do caminho.

 O percurso inteiro inclui controlar a redistribuição do excedente econômico, ferozmente concentrado nas últimas décadas na base do morde e assopra --arrocho de um lado, crédito e endividamento suicida do outro.

O saldo está exposto no cemitério de ossos da crise mundial.

Genocídio do emprego, classe média em espiral descendente, mercados atrofiados,  plantas industriais carcomidas,  anemia do investimento e colapso dos serviços público e do investimento estatal.

Para quem acha que a coisa começou agora, o insuspeito Wal Street Journal acaba de publicar  reportagem com números pedagógicos sobre o esmagamento da classe média no mundo rico, antes da crise.

Dados compilados por Emmanuel Saez, da Universidade da Califórnia em Berkeley, e Thomas Piketty, da Escola de Economia de Paris’, diz o Wall Street  corroboram o desmonte social em curso nos países ricos.

 Em 2012, os 10% mais ricos da população norte-americana ficaram com metade de toda a renda gerada no país. Trata-se do percentual mais alto desde 1917.
Mas o ovo regressivo vem sendo chocado bem antes disso.

Estatísticas coligidas por Branko Milanovic, ex-economista do Banco Mundial , adverte  o Wall Street, mostram que, de 1988 a 2008, a renda real dos 50% mais pobres nos EUA cresceu apenas 23%. Enquanto isso, a renda do 1% dos americanos no topo da pirâmide cresceu 113% no período –‘ um percentual que outros estudos consideram subestimado’, lembra o jornal conservador. As famílias dos 50% mais pobres na Alemanha e no Japão tiveram um desempenho ainda pior. A renda real dos 50% mais pobres no Japão caiu 2% em termos reais.

“As desigualdades nacionais em quase todos os lugares, exceto na América Latina, aumentaram", diz Milanovic  ao Wall Street.

Pela ansiedade dos nossos falcões e a animosidade de seus  gabolas no debate das questões nacionais, tudo indica que eles não querem ficar para trás.

Ao ouvirem notícias encorajadoras sobre o potencial do país desabafam enfadados:
‘Brasil? Poupe-me...’

domingo, 19 de janeiro de 2014

Militares que resistiram ao golpe de 1964 relembram perseguição

http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/03/1o-de-abril-militares-que-resistiram-ao-golpe-de-1964-relembram-perseguicao/

Rio de Janeiro – Esquecidas durante décadas, as histórias de militares vítimas da ditadura (1964-1985) finalmente começam a aflorar. Seja pelas mãos da Comissão Nacional da Verdade, seja pela mobilização dos integrantes das Forças Armadas cassados pelo regime, um dos lados esquecidos dos anos de chumbo ganha rosto e forma.

Ao longo do governo autoritário, oficialmente, estima-se que tenham morrido 357 pessoas, mas familiares de vítimas afirmam que esse número chega a 426, e que pode aumentar em decorrência das investigações da Comissão da Verdade (CNV), instituída em maio de 2012.

Nesse balanço, falta contabilizar opositores presos, torturados e aqueles que foram obrigados a se exilar. Essa história, porém, não estará completa se não registrar membros das Forças Armadas que resistiram ao golpe e se recusaram a obedecer ordens de seus superiores. Considerados subversivos, foram demitidos e, em alguns casos, perseguidos.

Com a finalidade de apurar denúncias, a Comissão da Verdade criou o Grupo de Trabalho Perseguição a Militares. A equipe foi criada em outubro de 2012, após a tomada de depoimento do brigadeiro da Aeronáutica Rui Moreira Lima, preso três vezes durante o regime. O grupo, liderado pelo pesquisador Cláudio Fonteles, prepara um trabalho grande sobre o tema, que será apresentado em abril.

Enquanto isso não ocorre, sobram histórias de militares que, assumindo uma postura totalmente contrária à dos golpistas de 1964, não se sujeitaram ao descumprimento da legalidade, às torturas e às mortes. No ano passado, a RBA recordou, no aniversário da derrubada do presidente constitucional João Goulart, a herança viva do regime, em uma série de reportagens que seguem atuais (sugere-se a leitura no box abaixo). Agora, aproveita a ocasião para dar voz àqueles que, depois de 49 anos, relembram o preço que tiveram de pagar por não aderir ao golpe. Nos próximos dias, serão cinco histórias. A começar pela de Paulo Henrique Ferro Costa, o homem “de sorte” que viu a “face da morte” e escapou.

Um homem de sorte

“Eu posso dizer que eu vi a face da morte. Aquela sala escura... Naquelas paredes, estava impregnado o grito de sangue de todos os torturados. E eu vi a face da morte ali. Eu me preparei para morrer. É horrível você morrer quando a natureza não programou aquele dia pra você”. Assim prossegue o relato de Paulo Henrique Ferro Costa, um dos membros da Marinha brasileira que resistiu ao golpe. Hoje aposentado, recebe a reportagem da RBA em sua casa em Niterói, rodeado por documentos. Solícito, tem a fala tranquila, com uma voz quase inaudível, sorrindo timidamente enquanto fala.

Conta, com riqueza de detalhes, diversos momentos de sua vida até que, por um instante, seus olhos azuis se desviam. Ele olha para frente, e a parede de sua sala parece levá-lo para as dependências do quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, zona norte do Rio de Janeiro. Ali ele esteve durante sua última prisão, no mês de maio de 1970 – a mais dura, conta.

“Vivia com uma menina que se envolveu na luta armada. Eu não aprovava. Eles iam prendê-la. Em um golpe de sorte, ela conseguiu escapar. E eles me prenderam na suposição de que eu soubesse onde ela estava. Eles me torturaram barbaramente”, conta. “Ela conseguiu escapar. Felizmente”, conclui, aliviado.

Natural de Belém do Pará, Ferro Costa havia terminado a Escola Naval em 1961 e era segundo-tenente em 1964. Não concordava com o golpe, nem com a ditadura. Afirma ter entrado na Marinha por convicção “de luta contra o fascismo”, com intuito de ajudar o Brasil e também de ter uma boa profissão. “Eu não entrei para dar golpe”, diz. 

Ferro Costa estava fazendo uma viagem de férias entre 31 de março e 1° de abril. A Marinha convocou a ele e outros que não haviam se apresentado imediatamente após o golpe. Ele conta que exercia papel de liderança junto aos marinheiros à época e tinha esperanças de uma possível resistência tanto por parte do presidente João Goulart, quanto de dentro das próprias Forças Armadas. “Dentro da Marinha, tivemos controle total. A esquadra toda estava nas nossas mãos, dos legalistas. Mesmo a cúpula militar sendo golpista, os navios não podiam sair porque os marinheiros não deixavam. Os oficiais que estavam no gabinete davam as ordens e a gente tinha o controle total, absoluto. O que aconteceu foi que o Jango não quis o enfrentamento. Ficou com receio de que essas coisas tivessem desdobramento”, afirma.

Em 12 de abril de 1964, foi levado ao Princesa Leopoldina, um transatlântico que manteve presos oficiais da Marinha, da Aeronáutica e do Exército. “Antes fui à casa de alguns colegas. Disse 'você sabe que estou me apresentando, se acontecer alguma coisa comigo, você sabe onde foi, quem foi'”. Era a primeira vez que ele entrava em um transatlântico. “As condições do navio eram suportáveis. A tortura eu não tive nos primeiros anos. Eu tive conhecimento dela em toda sua extensão no quartel da Barão de Mesquita.”

O próximo ato foi sua demissão da Marinha, em 19 de agosto. “Fui considerado morto, então, não tinha certidão de serviço militar. O decreto, inclusive, me considera morto”, diz, mostrando uma cópia do decreto expedido pelo Ministério da Marinha.

Foi preso novamente em 1965 e então condenado a cumprir 730 dias de prisão. Como já tinha ficado 257 dias na cadeia – 14 a mais do que o equivalente a um terço de sua pena –, foi solto. “Foi montado um inquérito contra mim, mas eles não tinham provas. Colocaram lá um rapaz que não era da Marinha, que não tinha o curso da Escola Naval. E ele faz um depoimento contra mim, dizia que eu o havia convidado para participar de um plano de comunicação da Marinha, cujo primeiro item era a sublevação dos marinheiros e o segundo item era a chacina dos oficiais. Gravíssimo. Mas eu não o conhecia, ele montou essa história”, lembra, segurando nas mãos a cópia de quatro folhas de papel pautado, com um depoimento escrito à mão, sem assinatura.

Ficou em liberdade até 1970, quando foi levado para o quartel da Barão de Mesquita, um dos maiores centros de detenção clandestina da ditadura. Foi lá onde morreu o deputado Rubens Paiva, segundo concluiu recentemente a Comissão da Verdade. Ferro Costa atribui sua sobrevivência à sorte. “Quando eu estava preso, depois de ser torturado, chamaram um oficial da comunidade de informação da Marinha. Por sorte, esse oficial tinha sido meu comandante no Colégio Naval. Ele me viu, me olhou... E eu disse: 'Olha, o curso que eu tenho é o mesmo que você tem, e eu não estudei no Colégio Naval para passar por isso'. E ele disse: 'Vou te tirar daqui'. E tirou”.

Sua saída foi dramática. Ficou por mais de duas horas algemado no porta-malas de um furgão, rodando pela cidade, tentando respirar através de uma passagem de ar muito pequena. “Fiquei me desidratando. Quase desmaio ali.”  Depois, ficou em uma prisão no Ministério da Marinha, em uma cela de 4 palmos por 11. “Não tinha água. Sabe esses sanitários que você tem aquele deposito de água para dar descarga? É dali que você tirava água para beber.”

Depois de uma semana, foi para a Base Naval da Ilha das Flores até que, mais uma vez, a sorte o favoreceu. “Minha família estava me procurando naquela angústia, porque as pessoas sumiam e ninguém sabia”. Foi quando seu pai telefonou ao Dops e, por coincidência, conversou com um general com quem havia servido o Exército e que era encarregado de seu inquérito. “E ele diz pro meu pai: 'Seu filho vai sair amanhã'. Sou um homem de sorte. Estou vivo mais por sorte do que por outra coisa.”

Questionado sobre sequelas físicas, ele responde que não as teve, mas conta que jamais conseguiu esquecer aquele período. “Dizem que a memória deleta a dor, mas a memória não deleta a dor da tortura. Ela permanece com a pessoa até a morte. É muito difícil você esquecer o que você passou lá.”

Ferro Costa já foi chamado de comunista inúmeras vezes. Nega ter tido qualquer ligação com grupos de resistência à ditadura. “Eu tinha leituras”, resume. Entre seus autores, estavam Darcy Ribeiro, Celso Furtado. Se lia Marx? “Todo mundo lia. Era uma efervescência incrível”, responde.  “Mas o que me influenciava mais era [Franz] Kafka, [Jean-Paulo] Sartre.”

Não tão otimista em relação à Comissão da Verdade, acredita na necessidade apurar casos de prisões arbitrárias e torturas, mas principalmente de se aprofundar no contexto histórico do Brasil na década de 1960. “A Comissão da Verdade vai apurar casos emblemáticos, como o do Rubens Paiva, do Herzog. Mas e o enredo do golpe? É fundamental, que não havia possibilidade de se implantar no Brasil um regime comunista, que muita gente honesta foi perseguida.”

Essa avaliação que se faz, para Ferro Costa, se deve em parte ao modo como ocorreu o fim do regime. Segundo ele, o ato se resumiu a um acordo. A anistia, em sua opinião, veio tarde.

Depois de sair de sua última prisão em 1970, exilou-se em Paris. Voltou no final dos anos 1970, quando já se discutia a anistia – nome que ele critica, preferindo usar “reparação”. Fez três concursos e foi aprovado. Sua primeira opção era a Eletronorte. Seu passado fichado, no entanto, impediu que ele assumisse o cargo. Acabou indo para a Fundação Educacional, em Brasília. 

“O que é mais grave é que a minha geração cristalizou essa verdade, de que os comunistas eram os verdadeiros inimigos do Brasil, e não a miséria e o atraso. Às vezes, eu vou em reunião de turma e parece que estou em uma reunião dos republicanos do Tea Party!”, conclui.

Minha fala no ato na ABI pela anulação do julgamento do Mensalão


http://www.hildegardangel.com.br/?p=17100

Hildegard Angel

Venho, como cidadã, como jornalista, que há mais de 40 anos milita na imprensa de meu país, e como vítima direta do Estado Brasileiro em seu último período de exceção, quando me roubou três familiares, manifestar publicamente minha indignação e sobretudo minha decepção, meu constrangimento, meu desconforto, minha tristeza, perante o lamentável espetáculo que nosso Supremo Tribunal Federal ofereceu ao país e ao mundo, durante o julgamento da Ação Penal 470, apelidada de Mensalão, que eu pessoalmente chamo de Mentirão.

Mentirão porque é mentirosa desde sua origem, já que ficou provada ser fantasiosa a acusação do delator Roberto Jefferson de que havia um pagamento mensal de 30 dinheiros, isto é, 30 mil reais, aos parlamentares, para votarem os projetos do governo.

Mentira confirmada por cálculos matemáticos, que demonstraram não haver correlação de datas entre os saques do dinheiro no caixa do Banco Rural com as votações em plenário das reformas da Previdência e Tributária, que aliás tiveram votação maciça dos partidos da oposição. Mentirão, sim!

Isso me envergonhou, me entristeceu profundamente, fazendo-me baixar o olhar a cada vez que via, no monitor de minha TV, aquele espetáculo de capas parecendo medievais que se moviam, não com a pretendida altivez, mas gerando, em mim, em vez de segurança, temor, consternação, inspirando poder sem limite e até certa arrogância de alguns.

Eu, que já presenciara em tribunais de exceção, meu irmão, mesmo morto, ser julgado como se vivo estivesse, fiquei apavorada e decepcionada com meu país. Com este momento, que sei democrático, mas que esperava fosse mais.

Esperava que nossa corte mais alta, composta por esses doutos homens e mulheres de capa, detentores do Supremo poder de julgar, fosse imune à sedução e aos fascínios que a fama midiática inspira.

Que ela fosse à prova de holofotes, aplausos,  projeção, mimos e bajulações da super-exposição no noticiário e das capas de revistas de circulação nacional. E que fosse impermeável às pressões externas.

Daí que, interpretação minha, vimos aquele show de deduções, de indícios, de ausências de provas, de contorcionismos jurídicos, jurisprudências pós-modernas, criatividades inéditas nunca dantes aplicadas serem retiradas de sob as capas e utilizadas para as condenações.

Para isso, bastando mudar a preposição. Se ato DE ofício virasse ato DO ofício é porque havia culpa. E o ônus da prova passou a caber a quem era acusado e não a quem acusava. A ponto de juristas e jornalistas de importância inquestionável classificarem o julgamento como de “exceção”.

Não digo eu, porque sou completamente desimportante, sou apenas uma brasileira cheia de cicatrizes não curadas e permanentemente expostas.

Uma brasileira assustada, acuada, mas disposta a vir aqui, não por mim, mas por todos os meus compatriotas, e abrir meu coração.

A grande maioria dos que conheço não pensa como eu. Os que leem minhas colunas sociais não pensam como eu. Os que eu frequento as festas também não pensam, assim como os que frequentam as minhas festas. Mas estes estão bem protegidos.

Importa-me os que não conheço e não me conhecem, o grande Brasil, o que está completamente fragilizado e exposto à manipulação de uma mídia voraz, impiedosa e que só vê seus próprios interesses. Grandes e poderosos. E que para isso não mede limites.

Esta mídia que manipula, oprime, seduz, conduz, coopta, esta não me encanta. E é ela que manda.

Quando assisti ao julgamento da Ação Penal 470, eu, com meu passado de atriz profissional, voltei à dramaturgia e me lembrei de obras-primas, como a peça As feiticeiras de Salém, escrita por Arthur Miller. É uma alegoria ao Macartismo da caça às bruxas, encetada pela direita norte-americana contra o pensamento de esquerda.

A peça se passa no século 17, em Massachusets, e o ponto crucial é a cena do julgamento de uma suposta feiticeira, Tituba, vivida em montagem brasileira, no palco do Teatro Copacabana, magistralmente, por Cléa Simões. Da cena participavam Eva Wilma, Rodolpho Mayer, Oswaldo Loureiro, Milton Gonçalves. Era uma grande pantomima, um julgamento fictício, em que tudo que Tituba dizia era interpretado ao contrário, para condená-la, mesmo sem provas.

Como me lembro da peça Joana D’Arc, de Paul Claudel, no julgamento farsesco da santa católica, que foi para a fogueira em 1431, sem provas e apesar de todo o tempo negar, no processo conduzido pelo bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, que saiu do anonimato para ao anonimato retornar, deixando na História as digitais do protótipo do homem indigno. E a História costuma se repetir.

No julgamento de meu irmão, Stuart Angel Jones, à revelia, já morto, no Tribunal Militar, houve um momento em que ele foi descrito como de cor parda e medindo um metro e sessenta e poucos. Minha mãe, Zuzu Angel, vestida de luto, com um anjo pendurado no pescoço, aflita, passou um torpedo para o então jovem advogado de defesa, Nilo Batista, assistente do professor Heleno Fragoso, que ali ele representava. O bilhete dizia: “Meu filho era louro, olhos verdes, e tinha mais de um metro e 80 de altura”. Nilo o leu em voz alta, dizendo antes disso: “Vejam, senhores juízes, esta mãe aflita quebra a incomunicabilidade deste júri e me envia estas palavras”.

Eu era muito jovem e mais crédula e romântica do que ainda sou, mas juro que acredito ter visto o juiz militar da Marinha se comover. Não havia provas. Meu irmão foi absolvido. Era uma ditadura sanguinária. Surpreende que, hoje, conquistada a tão ansiada democracia, haja condenações por indícios dos indícios dos indícios ou coisa parecida…

Muito obrigada.

sábado, 18 de janeiro de 2014

O fantasma da proletarização atemoriza os médicos

http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1511
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1511

Mercado e saúde não têm se revelado uma boa combinação: custos elevados, mau atendimento, negativas de exames e de cirurgias. O setor público não se sai melhor. O corporativismo e uma política deliberada de privatização contribuem para isso. É nesse contexto que as reações ao Mais Médicos precisam ser analisadas
por Paulo de Tarso Soares, Ana Paula Paulino da Costa, José Paulo Guedes Pinto
O que ocorre na medicina não é diferente do que ocorre no resto da economia capitalista. A luta entre patrão e empregado, a tal luta de classes, faz que o trabalho direto seja substituído pelas máquinas. E esse processo não é indolor.
Os equipamentos médicos, em geral produzidos por empresas monopolistas, estão cada vez mais caros. Só são lucrativos se operados em grande escala. Clínicas e hospitais são uma resposta a isso. A centralização de capital ocorre também no lado da demanda, mediante os convênios de saúde que aglutinam pacientes. A monopolização (poder de mercado via cartelização) avança, com a omissão e mesmo com a cumplicidade das instâncias (Executivo, Legislativo e Judiciário) que, supostamente, deveriam coibi-la. Ela só não avança entre os médicos, que cada vez mais se transformam em assalariados (explícitos ou disfarçados).
Mercado e saúde não têm se revelado uma boa combinação: custos elevados, empobrecimento/assalariamento dos médicos, mau atendimento ao público, dificuldades para marcação de consultas, negativas de exames e de cirurgias. O setor público não se sai melhor. O corporativismo e uma política deliberada de privatização contribuem para isso. É nesse contexto que as reações ao Programa Mais Médicos precisam ser analisadas.
Como a profissão de médico é afetada pelo processo descrito? Excluindo os médicos que trabalham nos poucos centros de excelência, esse profissional, hoje, basicamente ouve as queixas dos pacientes, pede exames e receita remédios num modo simplificado. Ele não precisa mais de tanto estudo, de tanto conhecimento de doenças. A tal medicina baseada em evidências e os protocolos transferiram o conhecimento médico para o computador. Ele é quase um operador de computadores.
O fantasma da proletarização atemoriza os médicos. Mas convenhamos, a medicina que estão praticando facilita isso. Ouvir sintomas, inseri-los em um programa de computador que lhe devolve os exames a serem solicitados e os remédios a serem receitados − tais tarefas precisam mesmo de mais do que quinze a vinte minutos com cada paciente? Os convênios pagam mesmo tão pouco aos médicos? Com R$ 30 por consulta não dá mesmo para sonhar com riqueza e prestígio social, mas o médico que faz em média três consultas por hora, trabalhando oito horas por dia, durante vinte dias no mês, gera R$ 14.400 ao final do mês. Isso é pouco?
Ah, responderão os médicos, como amortizo/pago os elevados custos com a minha formação? Mais um personagem, então, entra em cena, pois a centralização de capital também ocorre na educação. Assim, além da monopolização dos equipamentos e dos convênios, a monopolização na educação também “espreme” os médicos.
Isso é tudo? Não! Com o conhecimento médico embutido no computador é preciso que todo e qualquer médico tenha mesmo tantos anos de estudo? Não se está colocando na graduação o que deveria estar na pós-graduação? Dito de outra forma: o perfil da demanda por saúde está de acordo com o perfil da oferta de saúde? É racional formar tantos médicos para lidar com doenças graves quando a maioria dos problemas é de simples resolução? Parece-nos que não! O país precisa muito mais de médicos de família do que médicos de hospital terciário.
Ir para o interior soluciona o problema do assalariamento/empobrecimento? Do ponto de vista privado, os dados indicam que não. Não há por que supor qualquer ilusão monetária nos médicos. A cidade grande é muito atrativa. Os custos de migração são altos, especialmente para as cidades pequenas.
Mas, se é assim, por que a reação histérica, descabida, contra a vinda de médicos estrangeiros, especialmente dos médicos cubanos? A resposta está em que o Programa Mais Médicos afronta a lógica perversa aqui descrita e mexe fundo na ideologia predominante.
Um estetoscópio, um termômetro, um medidor de pressão e outro de glicemia, com a formação adequada, são suficientes para atender a esmagadora maioria dos casos. A presença de mais médicos em locais carentes, sem dúvida, promove um salto quantitativo e qualitativo na saúde local, além de reduzir a pressão sobre os hospitais, que hoje vivem lotados de casos simples e de casos graves. Os controles de pressão e de diabetes mais a divulgação de noções de puericultura fazem isso. O atendimento básico a uma população carente não será feito consumindo os recursos milionários que a área da saúde tanto ambiciona.
O médico que não conseguiu ser uma estrela vê-se espremido por todos os lados. Ideologicamente, no entanto, ele só vê problema na proletarização, pois ela é a negação do sonho de ficar rico, de ascensão social etc. A formação especialista do médico não o ajuda a olhar para o contexto. Treinado em ciência à laGalileu, ele não procura as causas, não olha para o processo, apenas faz associação de eventos e, no caso, considera: evento A (proletarização) versusevento B (sonho de riqueza).
Interesses inconfessáveis e preconceitos afloram. Não se pode desprezar o temor de que os estrangeiros venham concorrer aqui nas grandes cidades. A história está cheia de exemplos de proletários lutando contra proletários. Os cubanos, ademais, remetem o imaginário para o socialismo, tão em baixa desde a queda do Muro de Berlim e a derrocada da URSS. Médico cubano joga na cara a proletarização que tanto repugna o médico sonhador com riquezas e prestígio social.
A irracionalidade é flagrante. A medicina cubana, reconhecida como excelente pela Organização Mundial da Saúde, é acusada de ser de quinta categoria. Toma-se como demagógica uma política de saúde na qual se inclui o Programa Mais Médicos, a qual é diferente da irracionalidade prevalecente no Brasil: a formação de médicos assessórios dos monopólios que dominam a saúde é incompatível com a realidade financeira do nosso país. A prova “tipo OAB” para os médicos é veementemente recusada para os médicos nacionais, mas querem exigi-la (Revalida) dos cubanos, um corporativismo mascarado em defesa da lei (corporativa) e da saúde pública. Chegaram a chamar os cubanos de escravos de Fidel, pois eles receberão menos do que o governo brasileiro pagará à Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), que repassará os recursos ao governo de Cuba, mas esquece-se, omite-se, ignora-se, tapa-se a vista para o fato de que essa é a regra no capitalismo. Receber menos que o valor gerado, no capitalismo, é liberdade, mas no chamado socialismo é escravidão. Irônico? Não! Trágico.

Paulo de Tarso Soares
Doutor em Economia (FEA-USP).


Ana Paula Paulino da CostaMestre em Contabilidade e Controladoria (FEA-USP) e doutora em Administração – Estudos Organizacionais (EAESP/FGV-SP).


José Paulo Guedes PintoProfessor doutor da Universidade Federal do ABC (UFABC).


Ilustração: Andre Dahmer

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

EUA: Pesquisa em 68 países aponta o país como a maior ameaça à paz no mundo


http://limpinhoecheiroso.com/2014/01/17/eua-pesquisa-em-68-paises-aponta-o-pais-como-a-maior-ameaca-a-paz-no-mundo/

No entanto, uma visão enraizada na população norte-americana acredita que o país é uma força do bem no planeta e que qualquer ação destrutiva em outros países torna-se tolerável

Paul Street, em ZNet e lido na Revista Fórum

De acordo com uma pesquisa mundial publicada no final de 2013, com 66 mil pessoas em 68 países, conduzida pela Worldwide Independent Network of Market Research (WINMR) e Gallup International, a população mundial enxerga os EUA como a mais significante ameaça no planeta. Os EUA foram eleitos com uma larga margem (24%), enquanto em segundo lugar ficou o Paquistão (8%), seguido da China (6%). Afeganistão, Irã, Israel e Coreia do Norte empataram no quarto lugar (4%)

“Um cheque em branco em seu ‘McMundo’”

Uma manchete da International Business sobre a pesquisa da WINMR-Gallup pareceu questionar a validade e/ou racionalidade do resultado: “Em pesquisa do Gallup, a maior ameaça à paz mundial é… a América?”, dizia a manchete. Enquanto, na realidade, a visão mundial quanto ao status dos Estados Unidos como, de longe, a maior ameaça para a paz, deveria ser tudo, menos surpreendente para qualquer observador sério para com a política externa norte-americana e o cenário internacional. Os EUA representam, afinal de contas, quase metade de todo o gasto militar no mundo. Mantêm mais de mil bases militares em mais de 100 nações “soberanas” por todos os continentes. A administração Obama autoriza a ação das Operações Especiais em 75 a 100 países (a administração Bush contava com 60 em seu final) e conduz regulares ataques letais com drones contra alvos qualificados como terroristas (e um número muito maior de civis inocentes) no Oriente Médio, Sudeste Asiático e África. Mantém também um programa massivo de vigilância global dedicado a eliminar, de fato, a privacidade na Terra – um programa que espionou até mesmo os telefones pessoais de estadistas europeus, incluindo Ângela Merkel, na Alemanha. Como o mais famoso jornal alemão, Der Spiegel, escreveu em 1997: “Nunca antes na história moderna um pais dominou totalmente o planeta como os EUA o faz hoje, a América é agora o Schwarzenegger da política internacional: exibindo os músculos, intrusivo e intimidante, os norte-americanos, na ausência de limites impostos por qualquer um, agem como se tivessem um cheque em branco em seu ‘McMundo’”.

Sem pedido de desculpas

Esse Schwarzenegger decidiu fazer as coisas um pouco sozinho no atual milênio. Os EUA, desde o 11 de Setembro, mataram, marcaram e desalojaram milhões ao redor do mundo muçulmano como parte de sua Guerra ao (de) Terror. A violência é sempre conduzida em nome da paz, liberdade, democracia e segurança. Um incidente ilustrativo na guerra norte-americana ao/de terror ocorreu na primeira semana de maio de 2009. Foi quando um bombardeio norte-americano matou mais de 140 civis em Bola Boluk, um vilarejo na província de Farah, no oeste do Afeganistão. Noventa e três dos locais mortos, destroçados pelos explosivos norte-americanos, eram crianças. Apenas 22 eram homens de 18 anos ou mais velhos. Como o New York Times reportou:

“Em uma ligação telefônica colocada no viva voz na quarta-feira para o parlamento afegão, o governador da província de Farah, Rohul Amin, disse que cerca de 130 civis morreram, segundo o legislador, Mohammad Naim Farahi, ‘o governador disse que os locais trouxeram dois tratores cheio de pedaços de corpo humano para seu escritório, a fim de comprovar as mortes que ocorreram…todos estavam chorando, olhando para a cena chocante’. O sr. Farahi disse que conversou com alguém que conhecia pessoalmente, e tal pessoa havia contado 113 copos sendo enterrados, incluindo muitas mulheres e crianças”.

A resposta inicial do Pentágono do Obama para esse incidente horrível – um entre muitos outros ataques aéreos maciços que mataram civis no Afeganistão e Paquistão desde 2011 – foi jogar a culpa das mortes às “granadas do Talibã”. A secretária de Estado, Hillary Clinton, disse “lamentar” a perda de vidas humanas, mas a administração se recusava a fazer um pedido de desculpas ou reconhecer a responsabilidade dos EUA. Em contraste, Obama havia acabado de oferecer um pedido completo de desculpas e demitir um funcionário da Casa Branca por assustar nova-iorquinos por conta de uma sessão de fotos do Força Aérea Um (o avião presidencial norte-americano) voando baixo sobre Manhattan o que lembrou as pessoas do 11 de Setembro.

A disparidade foi extraordinária: assustar nova-iorquinos levou o presidente Obama a um pedido de desculpas e à demissão de um funcionário da Casa Branca, enquanto matar mais de 100 civis afegãos não requeria o mesmo pedido. Ninguém foi demitido e o Pentágono teve a permissão de seguir com as afirmações absurdas de como os civis morreram – histórias levadas a sério pela mídia. Os EUA, subsequentemente, conduziram uma duvidosa “investigação“ do massacre em Bola Boluk que reduziu a contagem de corpos e culpou o Talibã por colocar civis no caminho das bombas norte-americanas.

Filhas e filhos

Outro claro exemplo do compromisso dos EUA com a paz e a segurança é Fallujah, no Iraque. Em um discurso sobre política externa na véspera do anúncio de sua candidatura à presidência, Barack Obama teve a audácia de dizer que “o povo norte-americano tem sido extraordinariamente determinado. Eles viram suas filhas e filhos morrerem e se ferirem nas ruas de Fallujah”.

Essa seleção do lugar foi espantosa: Fallujah foi o local do maior atrocidade de guerra dos EUA – os crimes incluíram o assassinato indiscriminado de milhares de civis, ataques contra ambulâncias e hospitais e praticamente uma completa destruição de uma cidade inteira – pelos militares norte-americanos em abril e novembro de 2004. A cidade foi designada para destruição como um exemplo do incrível estado de terror prometido contra aqueles que ousarem resistir ao poder dos EUA. Em uma descrição:

“Os EUA lançaram dois ataques ferozes contra a cidade usando um poder de fogo devastador à distância, o que minimizou as baixas norte-americanas. Em abril, comandantes militares disseram ter alvejado com precisão forças insurgentes, no entanto, os hospitais locais reportaram que muitos ou a maioria das baixas eram civis, entre elas, mulheres, crianças e idosos… [refletindo uma] intenção de matar civis em geral. Em novembro, ataques aéreos destruíram o único hospital em território insurgente, para garantir que dessa vez ninguém pudesse documentar mortes de civis. As forças dos EUA então entraram na cidade, destruindo virtualmente tudo. Após isso, Fallujah parecia a cidade de Grozny, na Chechênia, quando as tropas de Vladimir Putin deixaram a cidade em escombros.

O uso de material radioativo nos ataques dos EUA em Fallujah ajudou a criar uma epidêmica mortalidade infantil, defeitos de nascimento, leucemia e câncer.

A cidade de Fallujah foi apenas um episódio especialmente ilustrativo de um vasto arco criminal de uma invasão que matou prematuramente pelo menos um milhão de civis iraquianos e deixou o país como “uma zona de desastre em uma escala catastrófica, dificilmente comparável na memória recente”.

“Então jogue-os em Guantânamo”

Lawrence Wilkerson é um ex-combatente que já serviu como chefe de gabinete do então secretário de Estado Colin Powell. Conversando com o jornalista investigativo Jeremy Scahill, ele descreveu uma típica operação das forças especiais durante a ocupação do Iraque: “Você entra lá e colhe algumas informações e você diz ‘Oh, isso é realmente uma boa informação para ser usada como ataque. Aqui está a Operação Trovão Azul. Vá cumpri-la’. Então eles vão e matam 27, 30, 40 pessoas, que seja, e capturam sete ou oito. Depois você descobre que a informação era ruim e você matou um bando de gente inocente e que também você tem um monte de inocentes presos em suas mãos, então jogue-os em Guantânamo. Ninguém nunca saberá a respeito e então você prossegue para a próxima operação”. Realmente, um cheque em branco.

A Estrada da Morte em 1991 e outras maneiras de se matar

Em 1991, na primeira vez que os EUA estiveram no Iraque, as forças norte-americanas massacram dezenas de milhares de soldados iraquianos que já haviam se rendido e estavam saindo do Iraque, entre 26 e 27 de fevereiro daquele ano, no que ficou conhecido como “A Estrada da Morte”.

Além da violência física direta, existem outras maneiras de se matar também. Cinco anos após a Estrada da Morte, a secretária de Estado, Madeline Albright, disse ao programa 60 Minutos da CBS, que a morte de 500 mil crianças, devido às sanções impostas pelos EUA ao Iraque era um “preço que valia a pena pagar” para a continuidade dos objetivos norte-americanos.

Mantendo a “máquina de matar rodando”

Qualquer um que pense que a selvageria imperialista dos EUA entrou em algum tipo de misericordiosa pausa por conta da chegada de Barack Obama está vivendo em um mundo de fantasias. Obama pode ter tido a tarefa de acabar com as guerras que falharam no Iraque e no Afeganistão (o mesmo trabalho teria caído nos colos de McCain, caso eleito), mas expandiu drasticamente a intensidade e o escopo da guerra com drones e a presença de tropas de forças especiais ao redor do mundo. Como o corajoso jornalista Allan Nairn destacou, Obama manteve a gigantesca e imperial “máquina de matar rodando”.

O tom foi definido logo no começo, com Obama autorizando dois grandes ataques com drones no Paquistão em seu quarto dia como presidente. O primeiro ataque “matou de sete a quinze pessoas, todas elas praticamente civis”. O segundo “atingiu a ‘casa errada’ e matou de cinco a oito civis”, incluindo duas crianças. Menos de seis meses depois, mais um dos “ataques precisos com drones” atingiu um funeral e matou “inúmeros civis – com idades de 18 a 55 anos”. Em outubro de 2009, Scahill reportou: “Obama já autorizou, em 10 meses, a mesma quantidade de ataques com drones que Bush fez em seus oito anos de mandato”. Uma fonte militar contou a Scahill sobre uma operação de assassinato padrão das forças especiais na era Obama: “Se existe uma pessoa que eles estão atrás, mas no mesmo local estão outras 34, então 35 pessoas irão morrer”.

“Os Estados Unidos são os do bem”

Na semana passada, uma radialista do Irã me perguntou se eu pensei que a pesquisa do WINMR-Gallup iria incitar qualquer repercussão anti-imperial por parte dos cidadãos norte-americanos, eu tive que dizer que não, por três razões. Primeiro, por ter sérias dúvidas que qualquer parte da mídia dominante nos EUA iria prestar atenção a uma pesquisa que tivesse tido como resultado algo que eles considerariam radicalmente inconsistente com a já habitual ideia que os EUA são uma força de paz e estabilidade no mundo. Segundo, porque pesquisas similares já haviam sido – fracamente – reportadas em outras ocasiões e pouco impacto tiveram na opinião pública e na orientação política nos EUA, que permanece indiferente às visões que outras pessoas têm sobre a parte ruim do poder dos EUA.

Por último, porque mesmo se a pesquisa e o que as pessoas no exterior pensam tivessem mais espaço na mídia norte-americana, parece irreal pensar que mais do que uma pequena minoria de cidadãos estejam prontos para aceitar a noção de que os EUA são realmente uma ameaça para a paz mundial, muito menos a maior ameaça. Considerando as reflexões do antigo correspondente internacional do New York Times Stephen Kinzer sobre as ações dos EUA na anexação do Havaí e das Filipinas, seu domínio sobre Porto Rico e seus golpes de Estado na Nicarágua e Honduras nos finais dos séculos 19 e 20:

“Por que os norte-americanos apoiam políticas que trazem tanto sofrimento às pessoas em terras estrangeiras? Existem duas razões para tal que, de tão interligadas, se tornam uma. A razão essencial é que o controle dos EUA em lugares distantes veio a ser visto como essencial para a prosperidade material dos EUA. Essa explicação, entretanto, está amarrada dentro de outra: a crença mais profunda da maioria dos norte-americanos de que o país deles é uma força para o bem no mundo. Então, consequentemente, até mesmo a mais destrutiva das missões em que os EUA embarcam para impor sua autoridade é tolerável. Gerações de políticos norte-americanos e líderes empresariais reconheceram o poder da nobre ideia do excepcionalismo dos EUA. Quando eles intervêm no exterior por razões estúpidas e egoístas, eles sempre insistem que, no final, suas ações irão beneficiar não apenas os EUA, mas também os cidadãos do país ao qual estão invadindo e, assim, por extensão, as causas da paz e da justiça no mundo”.

Esse problema do “excepcionalismo dos EUA” – a crença doutrinal de que os objetivos e comportamento dos EUA são inerentemente benevolentes, bem-intencionados e um bem para o mundo – permanece profundamente enraizado mais de um século depois. E é a principal razão para que as pessoas no mundo inteiro estejam corretas em identificar os EUA como a maior ameaça à paz no mundo. Nada é mais perigoso – e maléfico – que uma única superpotência militar que enxerga a si mesma além de qualquer reprimenda moral. Basta ler, a respeito disso, as seguintes declarações nacionalistas e narcisistas quanto à política externa norte-americana, tanto no partido democrata, quanto no republicano: “Um mundo uma vez dividido entre dois campos armados agora reconhece uma única e dominante potência, os Estados Unidos da América, e eles reconhecem isso sem temor, pois o mundo confia a nós com poder e o mundo está certo. Eles confiam em nós para sermos justos e comedidos. Eles confiam em nós para estar do lado da decência. Eles confiam em nós para fazermos o que é o certo”. – Presidente George H.W. Bush, 1992.

“Quando eu fui eleito, eu estava determinado que nosso país entrasse no século 21 sendo ainda a maior força de paz e liberdade no mundo. Pela democracia, segurança e prosperidade”. – Presidente Bill Clinton, 1996.

“A América foi escolhida para o ataque porque somos o mais brilhante raio da liberdade e oportunidade no mundo… Hoje, nossa nação viu o mal… Nossa força militar é poderosa e está preparada, nós iremos em frente para defender a liberdade e tudo o que é bom e justo em nosso mundo”. – Presidente George W. Bush, 11 de setembro de 2001.

“Nós lideramos o mundo combatendo males imediatos e promovendo o bem… A América é a última, a maior esperança da Terra… O maior propósito da América no mundo é promover e espalhar a liberdade. O momento norte-americano não passou… Nós iremos aproveitar esse momento e renovar o mundo”. – Candidato à presidência, Barack Obama, 23 de abril de 2007.

“Nossa segurança emana da justeza de nossa causa; a força de nosso exemplo; as qualidades moderadas de nossa humildade e comedimento”. – Presidente Barack Obama, 20 de janeiro de 2009.

“Os moralistas que pensam que não têm pecados”

Lendo essas declarações e considerando o quão criminosa, racista e imperial é a realidade da política externa dos EUA nesse e em outros séculos, pode-se pensar no que o M. Scott Peck, psicoterapeuta e autor do estudo do mal no ser humano, disse:

“O mal no mundo é cometido pelos moralistas que acham que não possuem pecados, pois não estão dispostos a sofrer do desconforto da autocrítica. Seu pecado mais básico é o orgulho – pois todos os pecados são reparáveis exceto o pecado de acreditar que não possui pecado. Uma vez que eles têm que negar sua própria maldade, é necessário enxergá-la nos outros. Eles projetam sua própria maldade no mundo”.

Isso soa como uma reflexão sobre a retórica norte-americana quanto ao “excepcionalismo dos EUA”. Quando combinada com o histórico alcance do poder militar norte-americano, o paralelo sugere que as pessoas no mundo estão perfeitamente certas em identificar a moralidade dos EUA como a maior ameaça à paz no planeta Terra.

O estudo de Peck, obviamente, era sobre indivíduos e não estruturas de poder. Até onde se sabe, Barack Obama é um indivíduo perfeitamente moral e caridoso em relação a sua família e amigos (o mesmo vale para George W. Bush). Mas isso é irrelevante quando se fala de assuntos internacionais, onde o papel do presidente dos EUA e seus assessores de alto escalão é avançar no – encharcado de sangue – projeto imperial norte-americano, sob um pretexto de intenção benevolente e uma forma maligna e narcisista chamada de “excepcionalismo norte-americano”.

O mundo, claramente, não é mais enganado pela grande modificação de Obama quanto ao “Schwarzenegger da política internacional”. Ele entende, corretamente, que o primeiro presidente pós-Bush, eleito com as palavras “esperança” e “mudança”, não é nada mais do que um represente novo do império usando roupas velhas.

Tradução: Vinicius Gomes

Breve comparativo entre a economia do Brasil e do mundo em 2013

http://jornalggn.com.br/noticia/breve-comparativo-entre-a-economia-do-brasil-e-do-mundo-em-2013

QUAIS PARÂMETROS? - O terrorismo midiático que se verifica atualmente no país é injustificável. Não se sustentam as apocalípticas sentenças, tampouco as místicas 'conclusões' a respeito da inflação e do PIB. Examinemos rapidamente a questão do PIB.

Segundo as estatísticas da União Europeia¹, a prévia do PIB de 2013 é a seguinte (principais países da União Europeia):

-Alemanha: 0.4%
-Espanha: -1.3%
-França: 0.2%
-Itália: -1.8%
-Holanda: -1.0%
-Áustria: 0.4%
-Polônia: 1.3%
-Portugal: -1.8%
-Reino Unido: 1.3%
-União Europeia: 0.0%
-Zona do Euro: -0.4%

Todos os países citados (com exceção do Reino Unido) tiveram queda no PIB de 2013 em relação a 2012 (o crescimento de alguns - por exemplo, a Alemanha - é inferior ao apurado em 2012). A Grécia fechará em 2013 seis anos consecutivos de queda no Produto Interno Bruto. É uma situação desesperadora.
No site também constam as previsões para os EUA e o Japão:

-EUA: 1.6%
-Japão: 2.1%

O crescimento do PIB dos EUA em 2013 foi menor que o verificado em 2012 (2,8% em 2012 e 1,6% em 2013).

A previsão para o Brasil em 2013, segundo o Banco Central², é de crescimento de 2,28% do PIB (maior do que o verificado em 2012).

Volta e meia surgem "especialistas" da oposição fracassada e da 'grande mídia' para bater bumbo contra o 'baixo crescimento' econômico de Pindorama... Não é verdade?

Mas e quais são (ou deveriam ser) os referenciais? Vejam mais alguns dados sobre o crescimento do PIB em 2013 (agora segundo o FMI)³:

-Laos: 8,3%
-Quirguistão: 7,3%
-Mongólia: 11,7%
-Ruanda: 7.5%
-Serra Leoa: 13.3%

Em relação a Serra Leoa, por exemplo, o crescimento do PIB do Brasil está muito ruim. Mas em relação a maior potência econômica do globo terrestre (EUA) o PIB do Brasil em 2013 está bom, porque acima do verificado na terra do Tio Sam.

Não é lá muito correto estabelecer comparações entre países tão díspares, o mais interessante seria comparar o Brasil com ele próprio. Mas se é para estabelecer esses comparativos, temos que decidir qual será o parâmetro dessas comparações.

Devemos nos comparar com as nações mais ricas e desenvolvidas ou com países paupérrimos e de industrialização rarefeita? Eis a questão.

Dentro do quadro de persistente crise econômica mundial, cujo detonador foi a quebra do banco Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008, o Brasil está se saindo muito bem. Lembremo-nos de que a crise de 2008 só é comparável historicamente ao Crash de 1929.

Finalizo sem entrar em maior detalhes a respeito de questões como emprego e distribuição de renda, e sem fazer comparações quaisquer entre o Brasil e outros países nestes quesitos. Aí já seria vandalismo...

Dentro do contexto internacional o Brasil atual está muito bem obrigado. Pode melhorar? Sem dúvida!

O que não se pode, como a oposição (midiática e partidária) faz no Brasil, é receitar remédios que a pretexto de "salvar" o país o transformem numa espécie de Grécia tropical.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O que move a política externa dos Estados Unidos

http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=9&id_noticia=210023&buffer_share=f2f8d&utm_source=buffer

Noam Chomsky

Um estudo feito por Lars Schoultz, um destacado acadêmico especialista em direitos humanos da América Latina, mostra que “a ajuda norte-americana tende a ser desproporcionalmente distribuída para os governos “latino-americanos que torturam seus cidadãos”.

Não tem nada a ver com quanto o país precisa de ajuda, somente com sua disposição em servir à riqueza e ao privilégio.

Estudos mais profundos, feitos pelo economista Edward Herman, revelam uma estreita correlação em todo o mundo entre a tortura e a ajuda norte-americana e fornecem uma explicação: ambas se correlacionam com a melhoria das condições de operações das empresas.

Em comparação com este guia de princípios morais, assuntos tais como tortura e carnificina caem na insignificância.

E a elevação do padrão de vida? Isso foi supostamente tratado na Aliança para o Progresso pelo presidente Kennedy, mas o tipo de desenvolvimento imposto foi direcionado, em sua maior parte, para as necessidades dos investidores norte-americanos.

A Aliança fortificou e ampliou o sistema vigente, pelo qual os latino-americanos produzem colheitas para exportação e reduzem as colheitas de subsistência, como milho e feijão, cultivadas para o consumo local.

Com o programa da Aliança, por exemplo, a produção de carne aumentou, enquanto o consumo interno de carne diminuiu.

Esse modelo agroexportativo de desenvolvimento, em geral, produz um “milagre econômico” em que o PNB – Produto Nacional Bruto – sobe, enquanto a maioria da população morre de fome.

Quando se segue tal orientação política, a oposição popular aumenta, o que, então, se reprime com terror e tortura. (O uso do terror é profundamente arraigado em nosso caráter.

Nos idos de 1818, John Quincy Adams elogiou a “eficácia salutar” do terror em se tratando das “hordas misturadas de índios e negros sem lei”.

Ele escreveu isso para justificar a violência de Andrew Jackson, na Flórida, que praticamente exterminou a população nativa e deixou a província espanhola sob o controle americano, impressionando muito Thomas Jefferson e outros mais com sua sabedoria.)

O primeiro passo é o uso da polícia; ela é decisiva porque sabe detectar logo o descontentamento e eliminá-lo antes da “grande cirurgia” (como é chamada nos documentos de planejamento) ser necessária.

Se a “grande cirurgia” for necessária, nós contamos com o Exército. Quando não conseguimos mais controlar o Exército dos países da América Latina – particularmente a região do Caribe e da América Central – é tempo de derrubar o governo.

Os países que tentaram inverter as regras, como a Guatemala, sob os governos capitalistas democráticos de Arévalo e Arbenz, ou a República Dominicana, sob o regime capitalista democrático de Bosch, tornaram-se alvo da hostilidade e da violência dos Estados Unidos.

O segundo passo é utilizar os militares. Os EUA sempre tentaram estabelecer relações estreitas com os militares de países estrangeiros, porque essa é uma das maneiras de derrubar um governo que saiu fora do controle.

Assim foram assentadas as bases para os golpes militares no Chile, em 1973, e na Indonésia, em 1965.

Antes desses golpes, éramos bastante hostis aos governos do Chile e da Indonésia, mas continuávamos enviando armas.

Mantenha boas relações com os oficiais certos e eles derrubarão o governo para você. O mesmo raciocínio motivou o fluxo de armas dos Estados Unidos para o Irã via Israel, desde o início de 1980.

De acordo com altos oficiais israelenses envolvidos, esses fatos eram conhecidos já em 1982, muito antes de haver reféns.

Durante o governo Kennedy, a missão dos militares latino-americanos, dominados pelos EUA mudou de “defesa hemisférica” para “segurança interna” (que basicamente significa guerra contra a própria população).

Essa decisão fatídica implicou a “direta cumplicidade [dos Estados Unidos]” com “os métodos dos esquadrões de extermínio de Heinrich Himler”, no julgamento retrospectivo de Charles Maechling, que foi encarregado do planejamento de contra-insurgência, de 1961 a 1966.

O governo Kennedy preparou o caminho para o golpe militar no Brasil em 1964, ajudando a derrubar a democracia brasileira, que se estava tornando independente demais.

Enquanto os Estados Unidos davam entusiasmado apoio ao golpe, os chefes militares instituíam um estado de segurança nacional de estilo neonazista, com repressão, tortura, etc.

Isso provocou uma explosão de acontecimentos semelhantes na Argentina, no Chile e em todo o hemisfério, desde os meados de 1960 até 1980 – um período extremamente sangrento.

(Eu penso, falando do ponto de vista legal, que há um motivo bem sólido para acusar todos os presidentes norte-americanos desde a Segunda Guerra Mundial.

Eles todos têm sido verdadeiros criminosos de guerra ou estiveram envolvidos em crimes de guerra.)

Os militares agem de maneira típica para criar um desastre econômico, seguindo frequentemente receita de conselheiros norte-americanos, e depois decidem entregar os problemas para os civis administrarem.

Um controle militar aberto não é mais necessário, pois já existem novas técnicas disponíveis, por exemplo, o controle exercido pelo Fundo Monetário Internacional (o qual, assim como o Banco Mundial, empresta fundos às nações do Terceiro Mundo, a maior parte fornecida em larga escala pelas potências industriais).

Em retribuição aos seus empréstimos, o FMI impõe a “liberalização”: uma economia aberta à penetração e ao controle estrangeiros, além de profundos cortes nos serviços públicos em geral para a maior parte da população, etc.

Essas medidas colocam o poder decididamente nas mãos das classes dominantes e de investidores estrangeiros (“estabilidade”), além de reforçar as duas clássicas camadas sociais do Terceiro Mundo – a dos super-ricos (mais a classe dos profissionais bem sucedidos que a serve) e a da enorme massa de miseráveis e sofredores.

A dívida e o caos econômico deixados pelos militares garantem, de forma geral, que as regras do FMI serão obedecidas – a menos que as forças populares queiram entrar na arena política. Neste caso, os militares talvez tenham de reinstalar a “estabilidade”.

O Brasil é um exemplo esclarecedor desse caso. Sendo um país muito bem dotado de recursos naturais, além de ter um alto desenvolvimento industrial, deveria ser uma das nações mais ricas do mundo.

Mas graças, em grande parte, ao golpe de 1964 e ao tão aclamado “milagre econômico” que se seguiu ao golpe (sem falar nas torturas, assassinatos e outros instrumentos de “controle da população”), a situação de muitos brasileiros foi, durante muitos anos, provavelmente parecida com a da Etiópia – e bem pior que a da Europa Oriental, por exemplo.

Em 1993, três décadas depois do golpe militar, o Brasil tinha uma taxa de mortalidade infantil maior que a do Sri Lanka.

Um terço da população vivia abaixo da linha da miséria e, nas palavras de uma revista dedicada aos países pobres, “sete milhões de crianças abandonadas pediam esmola, roubavam e cheiravam cola nas ruas.

E para milhares delas a casa era um barraco na favela… ou cada vez mais um pedaço de terra embaixo da ponte”.

Isso é o Brasil, um dos países de natureza mais rica do planeta. A situação era semelhante em toda a América Latina.

Apenas na América Central o número de pessoas assassinadas pelas forças apoiadas pelos EUA, desde o final de 1970 até meados dos anos 1990, girava em torno de duzentos mil, ao mesmo tempo que os movimentos populares, que visavam obter a democracia e a reforma social, foram dizimados.

Essas façanhas qualificam os Estados Unidos como fonte de “inspiração para o triunfo da democracia em nosso tempo”, nas admiráveis palavras da revista liberal New Republic.

Tom Wolfe conta-nos que a década de 1980 foi “um dos grandes momentos de ouro da humanidade”. Como diria Stalin: “Estamos deslumbrados com tanto sucesso.”


*Noam Chomsky é um linguista, filósofo e ativista político estadunidense. É professor de Linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
**Publicado no Diário do Centro do Mundo

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Os filhos da classe C mudarão a cara do Brasil

http://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/08/politica/1389216166_533445.html


A classe C é hoje protagonista na sociedade brasileira. São 40 milhões que, saídos da pobreza, constituíram um estrato que está influenciando na própria identidade do país. Os filhos dessas famílias constituídas pelos trabalhadores de mais baixo nível profissional, em sua maioria analfabetos ou quase, são uma novidade tão importante que, segundo Renato Meirelles, diretor do Instituto Data Popular, podem chegar a “mudar a cara do Brasil”.

Ao contrário de seus pais, que não estudaram, estes jovens já frequentam a escola e sabem mais do que eles. Querem, além disso, continuar sua formação para poder dar um salto social. Serão adultos muito diferentes de seus progenitores, segundo o perfil deles apresentado no estudo Geração C, feito pelo Data Popular com 23 milhões de jovens entre 18 e 30 anos e salários de até 1.020 reais por mês, o que abrange 55% dos brasileiros dessa idade.

Esses jovens são os novos formadores de opinião dentro de suas famílias: estão muito mais informados do que seus pais, são menos conservadores do que eles (sobretudo em questões sexuais e religiosas) e começam a ter uma grande força eleitoral.

De fato, são os setores políticos e religiosos os que estão mais preocupados e interessados em saber por onde se movem esses milhões de jovens que dentro de uns anos serão fundamentais para determinar os rumos do país.

Uma pequena mostra da inquietude desses jovens -- que contrasta com certa resignação atávica de seus pais, que se entregavam passivamente às mãos do Estado benfeitor – foi sua atitude nos protestos de junho passado. Muitos desses jovens que cunharam slogans criativos e subversivos provinham da periferia das grandes cidades e são filhos dessa classe C que já exigem mais do que os pais. São também os filhos da internet, da comunicação global e têm ideias próprias sobre a política e a sociedade.

Em alguns casos são eles que estão ajudando seus pais (sobretudo as mães, com pouco ou nenhum estudo) a usar o computador para que possam ter uma conta no Facebook ou enviar e-mails aos amigos.

Um fenômeno novo é que os pais desses jovens, com um salário melhor do que tinham quando viviam na pobreza, estão muitas vezes se sacrificando para que a filha, por exemplo, faça um curso de alguma coisa e “não tenha que limpar casas a vida toda”, ou para que o filho não precise ser “peão de obra” como seu pai, e sim técnico de internet e, se possível, médico ou advogado. De fato, muitos dos filhos já estão ganhando mais do que seus pais como empregados no mundo do comércio, na administração de empresas ou empreendendo seu pequeno negócio, como um salão de cabeleireiro ou uma pequena loja.

Esses jovens logo serão maioria no Brasil, e a eles terão de prestar contas o mundo político, o econômico e até o religioso. Segundo muitos estudos em andamento, esses jovens já pensam de forma diferente dos seus pais, são mais críticos com o poder e mais exigentes com as ações do governo. No campo religioso, eles também representam uma grande interrogação que começa a preocupar as diferentes religiões, sobretudo a Igreja Católica e as evangélicas. Segundo André Singer, um dos analistas mais agudos da sociedade brasileira, os pais dessa classe C pertenciam em 90% às igrejas evangélicas nas quais hoje se encontra fundamentalmente o universo mais pobre do país, enquanto a Igreja Católica tem maior influência entre as classes mais cultas e com renda maior.

No que crerão esses jovens? Essa é uma das incógnitas, objeto de estudo e preocupação do mundo religioso. Houve 35.000 respostas diferentes à pergunta feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE).

O que começa a parecer, de momento, é que muitos deles já estão desertando das igrejas evangélicas, cujos ensinamentos consideram conservadores demais. Em alguns casos, convenceram também os pais a deixar de frequentarem ditos templos.

Os católicos se beneficiarão desse distanciamento? Parece que não, já que os católicos, que constituíam 90% da população, estão perdendo fiéis a cada ano. Até ontem, para os evangélicos. A partir de agora, é difícil de profetizar.

As primeiras sondagens apontam que esses rapazes se inclinam mais em direção a uma “religiosidade sem Igreja”; a uma “secularização latente” que se afasta cada vez mais das igrejas tradicionais, tanto a católica como a evangélica. Continuam acreditando em Deus, como seus pais, mas rejeitam com mais facilidade as instituições religiosas oficiais.

Esses jovens são pós-industriais, pós-guerra fria; filhos dos movimentos ambientalistas, da cultura líquida e do processo imparável de secularização. São os que forjarão a identidade do Brasil no futuro imediato. Ou melhor, já estão forjando, embora, para muitos, isso ainda passe despercebido. E começam a ser maioria.

Mujica, teórico da transição pós-capitalista?


http://revistaforum.com.br/blog/2014/01/mujica-teorico-da-transicao-pos-capitalista/

Cada vez mais popular tanto nas redes sociais como na mídia tradicional, o presidente do Uruguai, Pepe Mujica, arrisca-se a sofrer um processo de diluição de imagem semelhante ao que atingiu Nelson Mandela. Aos poucos, cultua-se o mito, esvaziado de sentidos — e se esquecem suas ideias e batalhas. Por isso, vale ler o diálogo que Pepe manteve, no final do ano passado, com o jornalista catalão Antoni Traveria. Publicada no site argentino El Puercoespín, a entrevista revela um presidente que vai muito além do simpático bonachão que despreza cerimônias e luxos.

Mujica, que viveu a luta armada e compartilhou os projetos da esquerda leninista, parece um crítico arguto das experiências socialistas do século XX. Coloca em xeque, em especial, uma crença trágica que marcou a União Soviética e os países que nela se inspiraram: a ideia de que o essencial, para construir uma nova sociedade, era alterar as bases materiais da produção de riquezas. ”Não se constrói socialismo com pedreiros, capatazes e mestres de obra capitalistas”, ironiza o presidente. Não se trata de uma constatação lastimosa sobre o passado ou de um desalento. Mujica mantém-se convicto de que o sistema em que estamos mergulhados precisa e pode ser superado. Mas será um processo lento, como toda a mudança de mentalidades, e precisa priorizar o choque de valores: tornar cada vez mais clara a mediocridade da vida burguesa e apontar modos alternativos de convívio e produção. Leia a seguir, alguns dos trechos centrais da entrevista:


Fonte: Outras Palavras

“A batalha agora é muito mais longa. As mudanças materiais, as relações de propriedade, nem sequer são o mais importante. O fundamental são as mudanças culturais e estas transformações exigem muitíssimo tempo. Mesmo nós, que não podemos aceitar filosoficamente o capitalismo, estamos cercados de capitalismo em todos os usos e costumes de nossas vidas, de nossas sociedades. Ninguém escapa à densa malha do mercado, a sua tirania. Estamos em luta pela igualdade e para amortecer por todos os meios as vergonhas sociais. Temos que aplicar políticas fiscais que ajudem a repartir — ainda que seja uma parte do excedente — em favor dos desfavorecidos. Os setores proprietários dizem que não se deve dar o peixe, mas ensinar as pessoas a pescar; mas quando destroçamos seu barco, roubamos sua vara e tiramos seus anzóis, é preciso começar dando-lhes o peixe”.

“A vida é muito bela e é preciso procurar fazer as coisas enquanto a sociedade real funciona, ainda que seja capitalista. Tenho que cobrar impostos para mitigar as enormes dificuldades sociais; ao mesmo tempo, não posso cair no conformismo crônico de pensar que reformando o capitalismo vou a algum lado. Não podemos substituir as forças produtivas da noite para o dia, nem em dez anos. São processos que precisam de coparticipação e inteligência. Ao mesmo tempo em que lutamos para transformar o futuro, é preciso fazer funcionar o velho, porque as pessoas têm de viver. É uma equação difícil. O desafio é bravo. Há quem siga com o mesmo que dizíamos nos anos 1950. Não se deram conta do que ocorreu no mundo e por quê ocorreu. Sinto como minhas as derrotas do movimento socialista. Me ensinam o que não devo fazer. Mas isso não significa que vá engolir a pastilha do capitalismo, nesta altura de minha vida”.

“Não sei se vão me dar bola, mas digo aos jovens de hoje que aprendemos mais com o fracasso e a dor que com a bonança. Na vida pessoal e na coletiva pode-se cair uma, duas, muitas vezes, mas a questão é voltar a começar. E é preciso criar mundos de felicidade com poucas coisas, com sobriedade. Refiro-me a viver com bagagem leve, a não viver escravizado pela renovação consumista permanente que é uma febre e obriga a trabalhar, trabalhar e trabalhar para pagar contas que nunca terminam. Não se trata de uma apologia da pobreza, mas de um elogio à sobriedade — não quero usar a palavra austeridade, porque na Europa está sendo muito prostituída, quando se deixa as pessoas sem trabalho em nome do ‘austero’”.

“Em toda a história do Uruguai, o presidente repartia as licenças de rádio e TV com o dedo. Tivemos a ideia de abrir consultas e processos democráticos baseados em méritos. Pensamos e realizamos! O que certa imprensa diga não me preocupa. Já os conheço. O problema que o diário [uruguaio] El País pode me criticar e se, algum dia, estiver de acordo e me elogiar. Seria sinal de que ando mal”.