http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=9&id_noticia=210023&buffer_share=f2f8d&utm_source=buffer
Noam
Chomsky
Um estudo feito
por Lars Schoultz, um destacado acadêmico especialista em direitos humanos da
América Latina, mostra que “a ajuda norte-americana tende a ser
desproporcionalmente distribuída para os governos “latino-americanos que
torturam seus cidadãos”.
Não tem nada a ver com quanto o país precisa de
ajuda, somente com sua disposição em servir à riqueza e ao
privilégio.
Estudos mais profundos, feitos pelo economista Edward Herman,
revelam uma estreita correlação em todo o mundo entre a tortura e a ajuda
norte-americana e fornecem uma explicação: ambas se correlacionam com a melhoria
das condições de operações das empresas.
Em comparação com este guia de
princípios morais, assuntos tais como tortura e carnificina caem na
insignificância.
E a elevação do padrão de vida? Isso foi supostamente
tratado na Aliança para o Progresso pelo presidente Kennedy, mas o tipo de
desenvolvimento imposto foi direcionado, em sua maior parte, para as
necessidades dos investidores norte-americanos.
A Aliança fortificou e
ampliou o sistema vigente, pelo qual os latino-americanos produzem colheitas
para exportação e reduzem as colheitas de subsistência, como milho e feijão,
cultivadas para o consumo local.
Com o programa da Aliança, por exemplo,
a produção de carne aumentou, enquanto o consumo interno de carne
diminuiu.
Esse modelo agroexportativo de desenvolvimento, em geral,
produz um “milagre econômico” em que o PNB – Produto Nacional Bruto – sobe,
enquanto a maioria da população morre de fome.
Quando se segue tal
orientação política, a oposição popular aumenta, o que, então, se reprime com
terror e tortura. (O uso do terror é profundamente arraigado em nosso caráter.
Nos idos de 1818, John Quincy Adams elogiou a “eficácia salutar” do
terror em se tratando das “hordas misturadas de índios e negros sem lei”.
Ele escreveu isso para justificar a violência de Andrew Jackson, na
Flórida, que praticamente exterminou a população nativa e deixou a província
espanhola sob o controle americano, impressionando muito Thomas Jefferson e
outros mais com sua sabedoria.)
O primeiro passo é o uso da polícia; ela
é decisiva porque sabe detectar logo o descontentamento e eliminá-lo antes da
“grande cirurgia” (como é chamada nos documentos de planejamento) ser
necessária.
Se a “grande cirurgia” for necessária, nós contamos com o
Exército. Quando não conseguimos mais controlar o Exército dos países da América
Latina – particularmente a região do Caribe e da América Central – é tempo de
derrubar o governo.
Os países que tentaram inverter as regras, como a
Guatemala, sob os governos capitalistas democráticos de Arévalo e Arbenz, ou a
República Dominicana, sob o regime capitalista democrático de Bosch, tornaram-se
alvo da hostilidade e da violência dos Estados Unidos.
O segundo passo é
utilizar os militares. Os EUA sempre tentaram estabelecer relações estreitas com
os militares de países estrangeiros, porque essa é uma das maneiras de derrubar
um governo que saiu fora do controle.
Assim foram assentadas as bases
para os golpes militares no Chile, em 1973, e na Indonésia, em
1965.
Antes desses golpes, éramos bastante hostis aos governos do Chile e
da Indonésia, mas continuávamos enviando armas.
Mantenha boas relações
com os oficiais certos e eles derrubarão o governo para você. O mesmo raciocínio
motivou o fluxo de armas dos Estados Unidos para o Irã via Israel, desde o
início de 1980.
De acordo com altos oficiais israelenses envolvidos,
esses fatos eram conhecidos já em 1982, muito antes de haver
reféns.
Durante o governo Kennedy, a missão dos militares
latino-americanos, dominados pelos EUA mudou de “defesa hemisférica” para
“segurança interna” (que basicamente significa guerra contra a própria
população).
Essa decisão fatídica implicou a “direta cumplicidade [dos
Estados Unidos]” com “os métodos dos esquadrões de extermínio de Heinrich
Himler”, no julgamento retrospectivo de Charles Maechling, que foi encarregado
do planejamento de contra-insurgência, de 1961 a 1966.
O governo Kennedy
preparou o caminho para o golpe militar no Brasil em 1964, ajudando a derrubar a
democracia brasileira, que se estava tornando independente demais.
Enquanto os Estados Unidos davam entusiasmado apoio ao golpe, os chefes
militares instituíam um estado de segurança nacional de estilo neonazista, com
repressão, tortura, etc.
Isso provocou uma explosão de acontecimentos
semelhantes na Argentina, no Chile e em todo o hemisfério, desde os meados de
1960 até 1980 – um período extremamente sangrento.
(Eu penso, falando do
ponto de vista legal, que há um motivo bem sólido para acusar todos os
presidentes norte-americanos desde a Segunda Guerra Mundial.
Eles todos
têm sido verdadeiros criminosos de guerra ou estiveram envolvidos em crimes de
guerra.)
Os militares agem de maneira típica para criar um desastre
econômico, seguindo frequentemente receita de conselheiros norte-americanos, e
depois decidem entregar os problemas para os civis administrarem.
Um
controle militar aberto não é mais necessário, pois já existem novas técnicas
disponíveis, por exemplo, o controle exercido pelo Fundo Monetário Internacional
(o qual, assim como o Banco Mundial, empresta fundos às nações do Terceiro
Mundo, a maior parte fornecida em larga escala pelas potências
industriais).
Em retribuição aos seus empréstimos, o FMI impõe a
“liberalização”: uma economia aberta à penetração e ao controle estrangeiros,
além de profundos cortes nos serviços públicos em geral para a maior parte da
população, etc.
Essas medidas colocam o poder decididamente nas mãos das
classes dominantes e de investidores estrangeiros (“estabilidade”), além de
reforçar as duas clássicas camadas sociais do Terceiro Mundo – a dos super-ricos
(mais a classe dos profissionais bem sucedidos que a serve) e a da enorme massa
de miseráveis e sofredores.
A dívida e o caos econômico deixados pelos
militares garantem, de forma geral, que as regras do FMI serão obedecidas – a
menos que as forças populares queiram entrar na arena política. Neste caso, os
militares talvez tenham de reinstalar a “estabilidade”.
O Brasil é um
exemplo esclarecedor desse caso. Sendo um país muito bem dotado de recursos
naturais, além de ter um alto desenvolvimento industrial, deveria ser uma das
nações mais ricas do mundo.
Mas graças, em grande parte, ao golpe de
1964 e ao tão aclamado “milagre econômico” que se seguiu ao golpe (sem falar nas
torturas, assassinatos e outros instrumentos de “controle da população”), a
situação de muitos brasileiros foi, durante muitos anos, provavelmente parecida
com a da Etiópia – e bem pior que a da Europa Oriental, por exemplo.
Em
1993, três décadas depois do golpe militar, o Brasil tinha uma taxa de
mortalidade infantil maior que a do Sri Lanka.
Um terço da população
vivia abaixo da linha da miséria e, nas palavras de uma revista dedicada aos
países pobres, “sete milhões de crianças abandonadas pediam esmola, roubavam e
cheiravam cola nas ruas.
E para milhares delas a casa era um barraco na
favela… ou cada vez mais um pedaço de terra embaixo da ponte”.
Isso é o
Brasil, um dos países de natureza mais rica do planeta. A situação era
semelhante em toda a América Latina.
Apenas na América Central o número
de pessoas assassinadas pelas forças apoiadas pelos EUA, desde o final de 1970
até meados dos anos 1990, girava em torno de duzentos mil, ao mesmo tempo que os
movimentos populares, que visavam obter a democracia e a reforma social, foram
dizimados.
Essas façanhas qualificam os Estados Unidos como fonte de
“inspiração para o triunfo da democracia em nosso tempo”, nas admiráveis
palavras da revista liberal New Republic.
Tom Wolfe conta-nos que a
década de 1980 foi “um dos grandes momentos de ouro da humanidade”. Como diria
Stalin: “Estamos deslumbrados com tanto sucesso.”
*Noam Chomsky é um
linguista, filósofo e ativista político estadunidense. É professor de
Linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
**Publicado no
Diário do Centro do Mundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário