Publicado em 02/12/2012 no blog Falando verdades.
Moralismo capenga...
Depois
de muitas pesquisas, procura de arquivos ,eis que nos deparamos com farto
material que mostra a corrupção escancarada na Ditadura Militar que tem em seu
círculo até hoje defensores falso moralistas elitizados que falam em nome de
minorias ,vamos então abordar o tema.O combate
à corrupção foi palavra de ordem durante a ditadura. Nos porões do regime,
porém, a ilegalidade prevaleceu.
Por Heloisa Maria Murgel
Starling
Combater a corrupção e derrotar o comunismo: esses eram os
principais objetivos que fermentavam os discursos nos quartéis, às vésperas do
golpe que derrubou o governo João Goulart, em março de 1964. A noção de
corrupção dos militares sempre esteve identificada com uma desonestidade
específica: o mau trato do dinheiro público. Reduzia-se a furto. Na perspectiva
da caserna, corrupção era resultado dos vícios produzidos por uma vida política
de baixa qualidade moral e vinha associada, às vésperas do golpe, ao
comportamento viciado dos políticos diretamente vinculados ao regime
nacional-desenvolvimentista.
Animado por essa lógica, tão logo iniciou
seu governo, o marechal Castello Branco (1964-1967) prometeu dar ampla
divulgação às provas de corrupção do regime anterior por meio de um livro branco
da corrupção – promessa nunca cumprida, certamente porque seria preciso admitir
o envolvimento de militares nos episódios relatados. Desde o início o regime
militar fracassou no combate à corrupção, o que se deve em grande parte a uma
visão estritamente moral da corrupção.
Essa redução do político ao que
ele não é – a moral individual, a alternativa salvacionista – definiu o desastre
da estratégia de combate à corrupção do regime militar brasileiro, ao mesmo
tempo em que determinou o comportamento público de boa parte de seus principais
líderes, preocupados em valorizar ao extremo algo chamado de decência
pessoal.
Os resultados da moralidade privada dos generais foram
insignificantes para a vida pública do país. O regime militar conviveu tanto com
os corruptos, e com sua disposição de fazer parte do governo, quanto com a face
mais exibida da corrupção, que compôs a lista dos grandes escândalos de
ladroagem da ditadura. Entre muitos outros estão a operação Capemi (Caixa de
Pecúlio dos Militares), que ganhou concorrência suspeita para a exploração de
madeira no Pará, e os desvios de verba na construção da ponte Rio–Niterói e da
Rodovia Transamazônica. Castello Branco descobriu depressa que esconjurar a
corrupção era fácil; prender corrupto era outra conversa: “o problema mais grave
do Brasil não é a subversão. É a corrupção, muito mais difícil de caracterizar,
punir e erradicar”.
A declaração de Castello foi feita meses depois de
iniciados os trabalhos da Comissão Geral de Investigações. Projetada logo após o
golpe, a CGI conduzia os Inquéritos Policiais-Militares que deveriam identificar
o envolvimento dos acusados em atividades de subversão da ordem ou de corrupção.
Com jurisdição em todo o território nacional, seus processos obedeciam a rito
sumário e seus membros eram recrutados entre os oficiais radicais da Marinha e
da Aeronáutica que buscavam utilizar a CGI para construir uma base de poder
própria e paralela à Presidência da República.
O Ato Institucional n.º 5,
editado em 13 de dezembro de 1968, deu início ao período mais violento e
repressivo do regime ditatorial brasileiro – e, de quebra, ampliou o alcance dos
mecanismos instituídos pelos militares para defender a moralidade pública. Uma
nova CGI foi gerada no âmbito do Ministério da Justiça com a tarefa de realizar
investigações e abrir inquéritos para fazer cumprir o estabelecido pelo Artigo
8º. do AI-5, em que o presidente da República passava a poder confiscar bens de
“todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função
pública”.
Para agir contra a corrupção e dar conta da moralidade pública,
os militares trabalharam tanto com a natureza ditatorial do regime como com a
vantagem fornecida pela legislação punitiva. Deu em nada. Desde 1968 até 1978,
quando foi extinta pelo general Geisel, a CGI mancou das duas pernas. Seus
integrantes alimentaram a arrogante certeza de que podiam impedir qualquer forma
de rapinagem do dinheiro público, através da mera intimidação, convocando os
cidadãos tidos como larápios potenciais para esclarecimentos.
A CGI
atribuiu-se ainda a megalomaníaca tarefa de transformar o combate à corrupção
numa rede nacional, atuando ao mesmo tempo como um tribunal administrativo
especial e como uma agência de investigação e informação. Acabou submergindo na
própria mediocridade, enredada em uma área de atuação muito ampla que incluía
investigar, por exemplo, o atraso dos salários das professoras municipais de São
José do Mipibu, no Rio Grande do Norte; a compra de adubo superfaturado pela
Secretaria de Agricultura de Minas Gerais e as acusações de irregularidades na
Federação Baiana de Futebol. Entre 1968 e 1973 os integrantes da comissão
produziram cerca de 1.153 processos. Desse conjunto, mil foram arquivados; 58
transformados em propostas de confisco de bens por enriquecimento ilícito, e 41
foram alvo de decreto presidencial.
Mas o fracasso do combate à corrupção
não deve ser creditado exclusivamente aos desacertos da Comissão Geral de
Investigações ou à recusa de membros da nova ordem política em pagar o preço da
moralidade pública. A corrupção não poupou a ditadura militar brasileira porque
estava representada na própria natureza desse regime. Estava inscrita em sua
estrutura de poder e no princípio de funcionamento de seu governo. Numa ditadura
onde a lei degradou em arbítrio e o corpo político foi esvaziado de seu
significado público, não cabia regra capaz de impedir a desmedida: havia
privilégios, apropriação privada do que seria o bem público, impunidade e
excessos.
A corrupção se inscreve na natureza do regime militar também na
sua associação com a tortura – o máximo de corrupção de nossa natureza humana. A
prática da tortura política não foi fruto das ações incidentais de
personalidades desequilibradas, e nessa constatação reside o escândalo e a dor.
A existência da tortura não surgiu na história desse regime nem como algo que
escapou ao controle, nem como efeito não controlado de uma guerra que se
desenrolou apenas nos porões da ditadura, em momentos restritos.
Ao se
materializar sob a forma de política de Estado durante a ditadura, em especial
entre 1969 e 1977, a tortura se tornou inseparável da corrupção. Uma se
sustentava na outra. O regime militar elevou o torturador à condição de
intocável: promoções convencionais, gratificações salariais e até recompensa
pública foram garantidas aos integrantes do aparelho de repressão política. Caso
exemplar: a concessão da Medalha do Pacificador ao delegado Sérgio Paranhos
Fleury (1933-1979).
A corrupção garantiu a passagem da tortura quando
esta precisou transbordar para outras áreas da atividade pública, de modo a
obter cumplicidade e legitimar seus resultados. Para a tortura funcionar é
preciso que na máquina judiciária existam aqueles que reconheçam como legais e
verossímeis processos absurdos, confissões renegadas, laudos periciais
mentirosos. Também é necessário encontrar gente disposta a fraudar autópsias,
autos de corpo de delito e a receber presos marcados pela violência física. É
preciso, ainda, descobrir empresários dispostos a fornecer dotações
extra-orçamentárias para que a máquina de repressão política funcione com maior
precisão e eficácia.
A corrupção quebra o princípio da confiança, o elo
que permite ao cidadão se associar para interferir na vida de seu país, e ainda
degrada o sentido do público. Por conta disso, nas ditaduras, a corrupção tem
funcionalidade: serve para garantir a dissipação da vida pública. Nas
democracias – e diante da República – seu efeito é outro: serve para dissolver
os princípios políticos que sustentam as condições para o exercício da virtude
do cidadão. O regime militar brasileiro fracassou no combate à corrupção por uma
razão simples – só há um remédio contra a corrupção: mais
democracia.
Heloisa Maria Murgel Starling é professora de História da
Universidade Federal de Minas Gerais e co-autora de Corrupção: ensaios e
críticas (Editora da UFMG, 2008).
Saiba Mais – Bibliografia:
FICO,
Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura militar. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
GASPARI, Elio. Coleção As Ilusões Armadas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o
social: o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
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