http://www.cartacapital.com.br/revista/813/de-volta-para-o-passado-1967.html/
A Ásia, a África e a América Latina devem
recuperar até 2030 a relevância econômica que tinham no início do século XIX. Em
60 anos, os chamados países em desenvolvimento reverteram parte dos estragos
causados pelo colonialismo. Sua forma britânica, em especial na era vitoriana,
foi em grande parte responsável pela perda de participação da China e da Índia
na economia internacional nos dois últimos séculos. Em 1820, os chineses
respondiam por um terço das riquezas globais, mais do dobro da participação
atual. Após a Segunda Guerra Mundial, sua parcela caiu para 4,6%. A Índia
apresentou queda de 16% para 4,2% no mesmo período. E há 50 anos a contribuição
da América Latina para o PIB do planeta permanece estável, próxima de
8%.
O percurso de ascensão, queda e recuperação dos países atualmente
chamados de emergentes é descrito com minúcias pelo economista Deepak Nayyar, da
Universidade de Nova Délhi, em seu livro A Corrida pelo Crescimento, lançado no
Brasil pela Editora Contraponto. Na entrevista a seguir, Nayyar expõe sua busca
por uma versão da história econômica a partir do ponto de vista dos países
colonizados. Embora lembre que esses jamais terão as vantagens decisivas das
antigas metrópoles para se tornar motores do crescimento econômico mundial,
elogia ações como a criação do Banco de Desenvolvimento dos BRICS e a postura
dos emergentes diante da crise econômica global, além de expor as razões para a
queda do crescimento do grupo nos últimos anos. Em relação à economia
brasileira, defende a necessidade de uma mudança estrutural para elevar a
participação do setor manufatureiro no PIB, mas vê o País forte após a crise. “É
preciso moderar, inclusive corrigir, o pessimismo em relação ao
Brasil.”
CartaCapital: Em "A Corrida pelo Crescimento", o senhor decide
analisar um longo período histórico, entre o século XI e o XXI, para descrever a
ascensão, a queda e a recuperação da Ásia, África e América Latina na economia
mundial. Quais os motivos para um panorama tão amplo?
Deepak Nayyar: O
livro esboça esse panorama amplo, mas o foco está na segunda metade do século XX
e na primeira década do século XXI. Foi fundamental essa perspectiva de longa
duração para destacar a importância esmagadora desses países no mundo por mais
de mil anos. Por muito tempo, a narrativa sobre a evolução histórica da economia
mundial tem sido dominada pela perspectiva dos países ricos na Europa Ocidental
e na América do Norte. O entendimento convencional desse processo foi quase
integralmente eurocêntrico. Este livro oferece uma análise do processo a partir
da perspectiva de Ásia, África e América Latina. Ao fazê-lo, expõe uma história
não contada.
CC: Desde 1970, Ásia e África apresentaram um crescimento
significativo de seus respectivos setores industriais, enquanto no Brasil e nos
demais países latino-americanos houve um processo de desindustrialização. A
dificuldade de estimular o setor explica o modesto crescimento na América
Latina, se comparado ao de outros emergentes?
DN: Existem diferenças
significativas entre as regiões. A Ásia testemunhou uma mudança estrutural. No
mesmo período, a parcela da agricultura no PIB caiu 23%, a da indústria subiu
10% e a dos serviços cresceu 13%. Na América Latina e no Caribe, a parcela do
setor primário caiu 6%, mas a da indústria também, com queda de 3%. O setor
terciário cresceu 9%. Não é uma surpresa que a região tenha testemunhado uma
desaceleração em seu crescimento e tenha experimentado alguma
desindustrialização. Minha impressão é de que o Brasil saiu-se melhor em
comparação às outras economias latino-americanas e à África, mas não tão bem
quanto a Ásia. A moral da história para o Brasil é clara: incentivar uma mudança
estrutural que eleve a participação do setor manufatureiro na produção e no
emprego, o que permitirá um crescimento produtivo e reforçará o
desenvolvimento.
CC: O Brasil e a América Latina devem emular as
estratégias de crescimento de China e Índia?
DN: Cada país tem uma
trajetória histórica. Alguns dependem de commodities e recursos naturais como
base de seu sistema manufatureiro, caso do Brasil e da Argentina, enquanto
outros de uma mão de obra barata, entre eles China e Índia. O Brasil é um país
marcado por apoio estatal e abertura moderada ao mercado externo, enquanto a
China e a Índia são países intervencionistas, com abertura controlada. O Brasil
é diferente em seus contextos geográfico e econômico. Por isso, não deve buscar
emular o caminho dos asiáticos. Ele pode aprender com a experiência asiática,
mas os asiáticos também podem aprender com a brasileira.
CC: O setor
primário perdeu espaço nas economias latino-americanas, mas o agrobusiness
desenvolveu-se no Brasil. Atualmente, corresponde a quase 23% do PIB do País. O
foco na exportação de commodities traz riscos?
DN: É essencial moderar,
inclusive corrigir, o pessimismo em relação ao Brasil. Em perspectiva histórica,
o que falo torna-se óbvio. Entre 1820 e 1950, a América Latina foi a exceção. A
participação da região na economia global pulou de 2,5%, em 1870, para 7,5%, em
1950. É importante notar: durante o século XIX, enquanto os asiáticos eram
colonizados, os latino-americanos iniciaram seus processos de independência. A
mistura de forças tecnológicas, econômicas e políticas era de tal forma que a
América Latina permanecia, no entanto, presa à divisão internacional do
trabalho, ao exportar commodities para a Europa e importar bens manufaturados.
Desde 1950, a industrialização acelerou-se na região. O Brasil foi importante
parte desse processo. O “milagre brasileiro” era visto como uma história de
sucesso. Mas essa interpretação ruiu em 1980. O Brasil passou por crises de
endividamento e turbulência macroeconômica nas décadas de 1980 e 1990. A
recuperação significativa ocorreu apenas a partir dos anos 2000. Em 2010, o
Brasil estava entre os cinco primeiros países do mundo em desenvolvimento, em
termos de PIB, população, industrialização e engajamento com a economia mundial.
Se o agrobusiness constitui um quarto do PIB, é uma boa notícia. É natural que,
no Brasil, o setor manufatureiro seja baseado em commodities e recursos
naturais. O agrobusiness é uma parte da industrialização e do processo de
desenvolvimento. Dependência em commodities não processadas, aí sim, cria risco
e vulnerabilidade.
CC: Em seu livro, o senhor afirma que a menor
turbulência dos BRICS após a crise de 2008 deveu-se às condições iniciais, entre
elas a estabilidade macroeconômica, o maior controle interno do sistema
financeiro, as redes de seguridade social e o potencial de expansão do consumo.
A recuperação, por sua vez, teria sido rápida em razão da adoção de políticas
expansionistas, anticíclicas. Apesar da resistência inicial dos emergentes à
crise, o crescimento tem esfriado consideravelmente desde então. Como podemos
explicar essa desaceleração?
DN: Ela é em parte motivada pela “Grande
Recessão” ainda persistente nos países industrializados, como mostra a queda das
exportações da China para os Estados Unidos. A desaceleração nos outros grandes
países em desenvolvimento foi, porém, motivada em parte por seus próprios erros.
Políticas macroeconômicas voltaram a ser pró-cíclicas. Taxas de juro altas
sufocaram o investimento privado, enquanto tentativas de reduzir o déficit
fiscal espremeram o investimento público e limitaram a demanda interna, o que
enfraqueceu o crescimento. Taxas de câmbio altas, para preservar o financiamento
dos déficits em conta corrente, afetaram a performance das exportações
negativamente. Em agosto de 2013, o Morgan Stanley definiu o Brasil, a Índia, a
Indonésia, a África do Sul e a Turquia como os Cinco Frágeis. Pouco depois, a
Fidelity, instituição financeira de Boston, criou um novo acrônimo para países
promissores: MINT, relativo a México, Indonésia, Nigéria e Turquia. O
interessante é que Indonésia e Turquia estão em ambos os grupos. Tal pensamento,
está claro, é enquadrado em uma perspectiva de curto prazo. Não é surpresa, pois
vem de analistas do mercado financeiro. Em uma perspectiva de longo prazo, esse
pensamento é inapropriado, se não enganoso. Os países em desenvolvimento têm um
forte potencial de longo prazo.
CC: O sistema de Bretton Woods é
obsoleto?
DN: O FMI e o Banco Mundial foram criados 70 anos atrás. O
mundo mudou muito desde então. As instituições de Bretton Woods também mudaram,
mas para pior. Suas preocupações tornaram-se mais estreitas com a passagem do
tempo. As estruturas de governança internacional precisam ser democratizadas, em
particular nos sistemas de votação. Além disso, os pares de Breton Woods deviam
praticar aquilo que pregam em termos de transparência e confiabilidade. Acima de
tudo, as instituições precisam começar a colocar em dúvida sua crença a respeito
da mágica do mercado e reconhecer a importância das ações de instituições
públicas no processo de desenvolvimento. Tal mudança será possível apenas se os
países em desenvolvimento começarem a exercer sua influência em conformidade com
sua parcela muito maior no PIB mundial.
CC: Como o senhor avalia a
criação do Banco de Desenvolvimento dos BRICS?
DN: Os BRICS possuem um
potencial considerável na articulação de uma voz coletiva para influenciar as
instituições multilaterais, entre elas o FMI, o Banco Mundial e a OMC, assim
como as Nações Unidas. Tal cooperação ainda não se aprofundou, ou por esses
países ainda não terem reconhecido seu potencial para exercer uma influência
coletiva ou pela relação entre eles ser caraterizada por rivalidade econômica e
política. O espírito de solidariedade entre países em desenvolvimento precisa
ser preservado. A decisão recente de criar o Banco de Desenvolvimento é o passo
mais importante em direção a esse caminho. Será motivo de celebração se a
instituição ofertar linhas de financiamento aos países pobres em termos melhores
e diferentes daquelas do FMI e do Banco Mundial. Seria então uma alternativa
genuína e não simplesmente um substituto ou um complemento. É essencial para os
BRICS preservar a igualdade entre os países fundadores e promover parcerias com
os outros emergentes, para que as estruturas e os métodos de governança
permaneçam democráticos. Há o perigo de a institui-
ção evoluir da mesma
forma que o Banco Mundial e basear seu apoio em mecenato e condições.
CC:
Os países em desenvolvimento, afirma o senhor, não são capazes atualmente de
liderar a recuperação da economia mundial. Esse prognóstico também vale para as
próximas décadas?
DN: Muitos desses países têm déficits na balança
comercial e nas contas correntes. A China é uma exceção. Em teoria, o país
poderia estimular o crescimento em outros lugares se forçasse uma redução de seu
superávit comercial. Ainda assim, essa transformação não seria suficiente. Está
claro que nenhum desses países pode liderar a recuperação da economia mundial
nem mesmo como mercado de exportação, muito menos garantir recursos para
investimento, financiamento ao desenvolvimento e tecnologias para aumentar a
produtividade, como o Reino Unido fez no século XIX e os Estados Unidos no
século XX. A recuperação da economia mundial, a médio prazo, depende do ritmo da
recuperação no mundo industrializado, particularmente nos EUA. Tomadas em
conjunto, as nações em desenvolvimento podem constituir-se um complemento, não
substituto, dos velhos motores de crescimento em desaceleração. A longo prazo, a
situação pode mudar, especialmente a partir de 2030, quando os emergentes devem
se aproximar da importância que tinham em 1820.
*Reportagem publicada
originalmente na edição 813 de CartaCapital, com o título "De volta para o
passado"
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