http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/01/fascismo-brasileira.html
Parece crescente e cada vez mais evidente no Brasil que
importantes setores da classe média e classe alta simpatizam com ideais
semelhantes aos que formaram o caldeirão social do
fascismo
Historicamente a adesão inicial ao fascismo foi um fenômeno
típico das classes dominantes desesperadas e das classes médias empobrecidas e
apenas pontualmente conquistou os estratos mais baixos da sociedade,
ideologicamente dominados pelo trabalhismo social-democrata ou pelo comunismo.
Nos mais diversos cantos do mundo, dos nazistas na Alemanha e camisas-negras na
Itália, aos integralistas brasileiros e caudilhistas espanhóis seguidores de
Franco, as classes médias, empobrecidas pelas sucessivas crises do pós-guerra
(1921 e especialmente 1929), formaram o núcleo duro dos movimentos
fascistas.
Esse alinhamento ao fascismo teve como fundo principal uma
profunda descrença na política, no jogo de alianças e negociatas da democracia
liberal e na sua incapacidade de solucionar as crises agudas que seguiam ao
longo dos anos 1910, 20 e 30. Enquanto as democracias liberais estavam estáveis
e em situação econômica favorável, com certo nível de emprego e renda, os
movimentos fascistas foram minguados e pontuais, muito fracos em termos de
adesão se comparados aos movimentos comunistas da mesma época. Porém, uma vez
que a democracia liberal e sua ortodoxia econômica mostraram uma gritante
fraqueza e falta de decisão diante do aprofundamento da crise econômica nos anos
1920 e 30, a população se radicalizou e clamou por mudanças e
ação.
Lembremos que, quando os nazistas foram eleitos em 1932, a votação
foi bastante radical se comparada aos pleitos anteriores; 85% dos votos dos
eleitores alemães foram para partidos até então considerados mais radicais, a
saber, Socialistas (social-democracia), Comunistas e Nazistas
(nacional-socialistas), os dois primeiros à esquerda e o último à direita. Os
conservadores ortodoxos, anteriormente no poder, estavam perdidos em seu
continuísmo e indecisão, sem saber o que fazer da economia e às vezes até
piorando a situação, como foi o caso da Áustria até 1938, completamente
estagnada e sem soluções para sair da crise e do desemprego, refém da ortodoxia
de pensadores da escola austríaca, tornando-se terreno fértil para o radicalismo
nazista (que havia fracassado em 1934).
Além disso, o fascismo se
apresentava como profundamente anticomunista, o que, do ponto de vista das
classes dominantes mais abastadas e classes médias mais estáveis (proprietárias)
menos afetadas pelas crises, era uma salvaguarda ideológica, pois o “Perigo
Vermelho”, isto é, o medo de que os comunistas poderiam de fato tomar o poder,
era um temor bastante real que a democracia liberal parecia incapaz de
“resolver” pelos seus tradicionais métodos, especialmente após a crise de 1929.
O fascismo desta maneira se apresentou como último refúgio dos conservadores
(sejam de classe média ou da elite) contra o socialismo. Os intelectuais que
influenciavam os setores sociais menos simpáticos ao fascismo, o viam como um
mal menor “temporário” para proteger a “boa sociedade” das “barbáries
socialistas”, como o guru liberal Ludwig von Mises colocou, reconhecendo a
fraqueza da democracia liberal face ao “problema comunista”:
Não pode ser
negado que o Fascismo e movimentos similares que miram no estabelecimento de
ditaduras estão cheios das melhores intenções e que suas intervenções, no
momento, salvaram a civilização européia. O mérito que o Fascismo ganhou por
isso viverá eternamente na história. Mas apesar de sua política ter trazido
salvação para o momento, não é do tipo que pode trazer sucesso contínuo.
Fascismo é uma mudança de emergência. Ver como algo mais que isso, seria um erro
fatal. (L. von Mises, Liberalism, 1985[1927], Cap. 1, p. 47)
Além da
descrença na política tradicional e do temor do perigo vermelho num cenário de
crise, houve ainda uma razão fundamental para as classes médias adentrarem as
fileiras do fascismo: o medo do empobrecimento e a perda do status
social.
Esse sentimento – chamado de declassemént ou declassê no
aportuguesado, algo como ”deixar de ser alguém de classe” – remetia ao medo de
se proletarizar e viver a vida miserável que os trabalhadores, maior parte da
população, viviam naquela época. Geralmente associava-se ao receio de que o
prestígio social ou o reconhecimento social por sua posição econômica
esmorecessem, mesmo para pequenos proprietários e profissionais liberais sem
títulos de nobreza (ver Norbet Elias, Os Alemães). Esse medo entra ainda no
contexto de uma evidente rejeição republicana, uma reação conservadora do etos
nobiliárquico que dominava as classes altas e parte das classes médias urbanas
nos países fascistas, à consolidação dos ideais liberais (mais igualitários) na
estrutura social de poder e de privilégios, isto é, na tradição social
aristocrática. Não foi por acaso que o fascismo foi uma força política
exatamente onde os ideais liberais jamais haviam se arraigado, como Itália,
Espanha, Portugal, Alemanha e Brasil.
Por fim, cumpre lembrar que os
fascistas apelam à violência como forma de ação política. Como disse Mussolini:
“Apenas a guerra eleva a energia humana a sua mais alta tensão e coloca o selo
de nobreza nas pessoas que têm a coragem de fazê-la” (Doutrina do Fascismo,
1932, p. 7). A perseguição sem julgamento, campos de trabalho e autoritarismo
não só vieram na prática muito antes do genocídio e da guerra, mas também já
estavam em suas palavras muito antes de acontecerem. No discurso e na prática, a
sociedade é (ou destina-se) apenas para aqueles que o fascista identifica como
adequados; há um evidente elitismo e senso de pertencimento “correto” e
“verdadeiro”, seja uma concepção de nação ou de identidade de raça ou grupo. E
essa identidade “verdadeira” será estabelecida à força se preciso.
Mas
porque estamos falando disso?
Parece crescente e cada vez mais evidente
no Brasil que importantes setores da classe média e classe alta simpatizam com
ideais semelhantes aos que formaram o caldeirão social do
fascismo?
Vimos em texto recente que a sociedade brasileira, em
particular a classe média tradicional e a elite, carrega fortes sentimentos
anti-republicanos (ou anticonstitucionais), herdados de nossa sucessão de
classes dominantes sem conflito e mudança estrutural, sem qualquer alteração
substancial de sua posição material e política, perpetuando suas crenças e
cultura de Antigo Regime. Privilégios conquistados por herança ou “na amizade”,
contatos pessoais, indicações, nepotismos, fiscalização seletiva e personalista;
são todas marcas tradicionais de nossa cultura política. A lei aqui “não pega”,
do mesmo jeito que para nazistas a palavra pessoal era mais importante que a
lei. Há um paralelo assustador entre a teoria do fuhrerprinzip e a prática da
pequena autoridade coronelista, à revelia da lei escrita, presente no
Brasil.
Talvez por isso, também tenhamos, como a base social do fascismo
de antigamente, uma profunda descrença na política e nos políticos. Enojada pelo
jogo sujo da política tradicional, das trocas de favores entre empresas e
políticos, como o caso do Trensalão ou entre políticos e políticos, como os
casos dos mensalões nos mais variados partidos, a classe média tradicional
brasileira se ilude com aventuras políticas onde a política parece ausente, como
no governo militar ou na tecnocracia de governos de técnicos administrativos
neoliberais. Ambos altamente políticos, com sua agenda definida, seus interesses
de classe e poder, igualmente corruptos e escusos, mas suficientemente
mascarados em discursos apolíticos e propaganda, seja pelo tecnicismo neoliberal
ou pelo nacionalismo vazio dos protofascistas de 1964, levando incautos e
ingênuos a segui-los como “nova política” messiânica que vai limpar tudo que
havia de ruim anteriormente
Por sua vez, como terceiro ponto em comum,
partes das classes médias tradicionais e a elite tem um ódio encarnado de
“comunistas”, e basta ler os “bastiões intelectuais” da elite brasileira, como
Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino ou Olavo de Carvalho ou mesmo porta-vozes
do soft power do neoconservadorismo brasileiro, como Lobão e Rachel Sherazade. É
curioso que o mais radical deles, Olavo de Carvalho, enxergue “marxismo
cultural” em gente como George Soros (mega-especulador capitalista),
associando-o ao movimento comunista internacional para subjugar o mundo cristão
ocidental. Esse argumento em essência é basicamente o mesmo de Adolf Hitler: o
marxismo e o capital financeiro internacional estão combinados para destruir a
nação alemã (Mein Kampf, 2001[1925], p. 160, 176 e 181).
A violência
fascista, por sua vez, é apresentada na escalada de repressão punitivista e
repressora do Estado, apesar de – ainda – ser menos brutal que o culto à guerra
dos fascistas dos anos 1920 e 30. Antes restritos apenas aos programas
sensacionalistas de tv sobre violência urbana e aos apologistas da ditadura como
Jair Bolsonaro, o discurso violento proto-fascista “bandido bom é bandido
morto”, que clama por uma escalada de repressão punitiva, sai do campo
tradicionalmente duro da extrema direita e se alinha ao pensamento de
economistas liberais neoconservadores que consideram que “o criminoso faz um
cálculo antes de cometer seu crime, então é o caso de elevar constantemente o
preço do crime (penas intermináveis, assédio, execuções), na esperança de levar
aqueles que sentirem tentados à conclusão de que o crime já não compensa” (Serge
Hamili, 2013). Assim, a apologia repressora se alinha à lógica do punitivismo
mercantil de apologistas do mercado, mimetizando um Chile de Pinochet onde um
duríssimo estado repressor, anticomunista, está alinhado com o discurso
neoliberal mais radical.
E, ainda, somam-se a isso tudo o classismo e
o racismo elitista evidentes de nossa “alta” sociedade. Da “gente diferenciada”
que não pode frequentar Higienópolis, passando pelo humor rasteiro de um
Gentili, ou o explícito e constrangedor classismo de Rachel Sherazade, que se
assemelha à “pioneira revolta” de Luiz Carlos Prates ao constatar que “qualquer
miserável pode ter um carro”, culminando com o mais vergonhoso atraso de Rodrigo
Constantino em sua recente coluna, mostrando que nossos liberais estão mais
inspirados por Arthur de Gobineau e Herbert Spencer do que Adam Smith ou Thomas
Jefferson. A elite e a classe média tradicional (que segue o etos da primeira),
não têm mais vergonha de expor sua crença no direito natural de governar e
dominar os pobres, no “mandato histórico” da aristocracia sobre a patuléia
brasileira. O darwinismo social vai deixando o submundo envergonhado da extrema
direita para entrar nos nossos televisores diariamente.
Assim, com uma
profunda descrença na política tradicional e no parlamento, somada a um
anti-republicanismo dos privilégios de classe e herança, temperados por um
anticomunismo irracional sob auspícios de um darwinismo social histórico e
latente, aliado a uma escalada punitivista alinhada a “ciência” econômica
neoliberal, temos uma receita perigosa para um neofascismo à brasileira. Porém,
antes que corramos para as montanhas, falta um elemento fundamental para que
esse caldeirão social desemboque em prática neofascista real: crise econômica
profunda.
Apesar do terrorismo midiático, nossa sociedade não está em
crise econômica grave que justifique esta radicalização filo-fascista recente.
Pela primeira vez em décadas, o país vive certo otimismo econômico e, enquanto
no final dos anos 1990, um em cada cinco brasileiros estava abaixo da linha da
pobreza, hoje este número é um em cada 11. A Petrobrás não só não vai quebrar
como captou bilhões recentemente. A classe média nunca viajou, gastou no
exterior e comprou tanto quanto hoje, nem mesmo no auge insano do Real valendo
0,52 centavos de dólar. O otimismo brasileiro está muito acima da média mundial,
mesmo que abaixo das taxas dos anos anteriores.
No entanto, apesar de
tudo isso, parte das antigas classes médias e elites continuam se radicalizando
à extrema direita, dando seguidos exemplos de racismo, intolerância, elitismo,
suporte ao punitivismo sanguinário das polícias militares, aplaudindo a
repressão a manifestações e indiferentes a pobres sendo presos por serem pobres
e negros em shopping centers. Isso tudo com aquela saudade da ditadura permeando
todo o discurso. Se não há o evidente declassmént, o empobrecimento econômico,
ou mesmo um medo real do mesmo, como explicar esta radicalização
protofascista?
Não é possível que apenas o tradicional
anti-republicanismo, o conservadorismo anti-esquerdista e o senso de
superioridade de nossas elites e classes médias tradicionais sejam suficientes
para esta radicalização, pois estes fatores já existiam antes e não
desencadeavam tamanha excrescência fascistóide pública.
Não.
O
Brasil vive um fenômeno estranho. As classes médias tradicionais e elite estão
gradualmente se radicalizando à extrema direita muito mais por uma sensação de
declassmént do que por uma proletarização de fato, causada por alguma crise
econômica. Esta sensação vem, não do empobrecimento das classes médias
tradicionais (longe disso), mas por uma ascensão econômica das classes
historicamente subalternas. Uma ascensão visível. Seja quando pobres compram
carros com prestações a perder de vista; frequentam universidades antes
dominadas majoritariamente por ricos brancos; ou jovens “diferenciados” e
barulhentos frequentam shoppings de classe média, mesmo que seja para olhar a
“ostentação”; ou ainda famílias antes excluídas lotando aeroportos para visitar
parentes em toda parte.
Nossa elite e antiga classe média cultivaram por
tanto tempo a sua pretensa superioridade cultural e evidente superioridade
econômica, seu sangue-azul e posição social histórica; a sua situação material
foi por tanto tão sem paralelo num dos mais desiguais países do mundo, que a
mera percepção de que um anteriormente pobre pode ter hábitos de consumo e
culturais similares aos dela, gera um asco e uma rejeição tremenda. Estes
setores tradicionais, tão conservadores que são, tão elitistas e mal acostumados
que são, rejeitam em tal grau as classes historicamente humilhadas e excluídas,
“a gente diferenciada” que deveria ter como destino apenas à resignação
subalterna (“o seu lugar”), que a ascensão destes “inferiores” faz aflorar todo
o ranço elitista que permanecia oculto ou disfarçado em anti-esquerdismo ou em
valores familiares conservadores. Não há mais máscara, a elite e a classe média
tradicional estão mais e mais fazendo coro com os históricos setores
neofascistas, racistas e pró-ditadura. Elas temem não o seu empobrecimento de
fato, mas a perda de sua posição social histórica e, talvez no fundo, a antiga
classe média teme constatar que sempre foi pobre em relação à elite que bajula,
e enquanto havia miseráveis a perder de vista, sua impotência política e vazio
social, eram ao menos suportáveis.
*Leandro Dias é formado em História
pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve mensalmente para Pragmatismo
Politico. (riorevolta@gmail.com)
Texto
revisado por Carolina Dias
REFERÊNCIAS GERAIS:
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