http://www.cartamaior.com.br/?%2FEditorial%2FBrasil-Poupe-me-%2F30077
Foi preciso que o presidente de um dos maiores bancos
brasileiros viajasse 8.940 kms para fora do país, um estirão aéreo de 11 hs
até Genebra, na Suíça, para encontrar um jornalista, o competente Assis Moreira,
correspondente do Valor Econômico, disposto a ouvir e reportar uma visão da
economia ausente na pauta do Brasil aos cacos, que predomina nas páginas do
seu próprio jornal.
Que isso tenha acontecido na carimbada paisagem de
neve e ternos pretos de Davos, onde se realiza o concílio das corporações
capitalistas, diz algo sobre o belicismo da emissão conservadora em azedar
as expectativas contra o Brasil e seu desenvolvimento.
Luiz Carlos
Trabuco Cappio, presidente do Bradesco, não dirige uma instituição
socialista.
Segundo maior banco do país, o Bradesco acumulou até o 3º
trimestre de 2013 um lucro da ordem de R$ 9 bilhões, em boa parte pastejando
tarifas e juros no lombo de seus clientes.
Até aí, estamos na norma de
um setor que ao primeiro alarme da crise mundial deixou o Brasil falando
sozinho.
Recolheu-se ao bunker dos títulos públicos (juro limpo, risco
zero de inadimplência) e deixou o pau quebrar do lado de fora.
Mais de
50% do financiamento da economia brasileira hoje é garantido pelos bancos
estatais – 15 pontos acima do padrão de mercado pré-crise.
Não
dispusesse de um sistema de bancos estatais, o país seria arrastado à crise
pela vocação pró-cíclica da lógica financeira.
O Bradesco tem 26 milhões
de correntistas; está espalhado por todo o Brasil –sua rede de oito mil
agências talvez só perca para a do Banco do Brasil.
Um dos segmentos de
maior expansão do banco no ano passado foi a carteira imobiliária: o
financiamento de imóveis totalizou R$ 12,5 bi –crescimento de 33% no período,
contra 11% do credito em geral.
Talvez essa capilaridade explique a
dissonância.
O que disse Trabuco, em Genebra, destoa da água para o
vinho dos clamores emitidos pela república rentista, aferrada a circularidade do
lucro que não passa pela produção, nem pelo consumo.
No cassino, a regra
de ouro é o descompromisso com a sorte do desenvolvimento e o destino da
sociedade –não raro, o confronto, em modalidades conhecidas.
A saber:
arbitragem de juros (leia ‘O governo invisível não quer Dilma’; neste blog),
especulação com papelaria e moedas (bolsas, volatilidade cambial) e imposição
de Selic gorda no financiamento da dívida pública.
Até mesmo pelo maior
entrelaçamento geográfico com o país real (se o Brasil der errado isso tem
consequências) o dirigente do Bradesco se obriga a um outra visão da economia e
do governo.
Excertos da sua entrevista a Assis Moreira soam como
mensagens de um marciano em meio ao alarido do rentismo local:
(...) ‘O
grande desafio que nós temos é fazer o capital produzir no Brasil. É fazer o
investimento estrangeiro ou capital privado nacional funcionar para suprir os
nossos fossos, principalmente de infraestrutura. O Brasil não é um país pobre, é
um país desigual. Não é um país improdutivo. Nós temos problema de
competitividade, mas o país é produtivo’.
(...) ‘ninguém quer ficar fora
do Brasil. Porque a democracia brasileira, o Judiciário, as instituições, a
harmonia social, independente dos problemas que possam existir, tem uma coesão.
O Brasil tem um projeto de país’.
(...) ‘Houve uma época na economia
brasileira em que tudo estava no curto prazo. Agora, teve um alongamento. E foi
positivo, porque o governo soube aproveitar isso, que foi o alongamento da
dívida interna. Hoje já temos estoques importante de títulos de 2045, de
2050’.
(...) ‘O relatório do FMI foi até positivo em alguns aspectos,
porque olhou para a economia brasileira e viu um crescimento superior à média da
projeção dos economistas brasileiros. Isso é o reconhecimento da capacidade do
PIB potencial.
Com relação ao movimento de capitais, o FMI falou
genericamente, sobre migração [de capital]. O pior dos mundos seria um cenário
em que os Estados Unidos, Europa e Ásia mudassem o patamar dos juros, aí
teríamos... Acho que a fuga de capital no Brasil não se aplica’.
Isso
na 4ª feira. Um dia antes, o mesmo jornal debruçava-se no colo do mercado
financeiro para anunciar a rejeição do governo invisível do dinheiro à
reeleição de Dilma.
A dificuldade em pensar o Brasil advém, muito, da
inexistência de um espaço ecumênico de debate em que opiniões como a de um
Trabuco, ou a de Luiza Trajano --a dona do Magazine Luiza, que desancou ao
vivo um gabola desinformado do pelotão conservador-- deixem de ser um acorde
dissonante no jogral que diuturnamente aterroriza: de amanhã o Brasil não
passa.
Os desafios ao passo seguinte do desenvolvimento brasileiro são
reais.
De modo muito grosseiro, trata-se de modular um ciclo de ganhos de
produtividade (daí a importância de resgatar seu principal núcleo irradiador, a
indústria) que financie novos degraus de acesso à cidadania plena.
A
força e o consentimento necessários para conduzir esse novo ciclo requisitam
um salto de discernimento e organização social, indissociável de um amplo
debate sobre metas, ganhos, prazos, sacrifícios e valores.
Não se
trata apenas de sobreviver à convalescência do modelo
neoliberal.
Trata-se de distinguir se a crise global é uma ruptura ou o
desdobramento natural de um modelo cuja restauração é defendida por rentistas,
jornalistas e rapazes assertivos, desprovidos do recheio
competente.
Antes de classificar como excrescência o que se assiste na
Europa --onde o ajuste neoliberal produziu 26,5 milhões de desempregados,
implodiu pilares da civilização e acumula déficits paralisantes, que a recessão
‘saneadora’ não permite deflacionar--, talvez fosse mais justo creditar à razia
o bônus da coerência.
O que o schumpeterismo ortodoxo promove no antigo
berço do Estado do Bem- Estar Social é radicalização do processo de ‘destruição
criativa’ que por três décadas esganou o rendimento do trabalho, sacrificou
soberanias, instituições e direitos, simultaneamente a concessão de mimos
tributários aos endinheirados.
Para clarear as coisas: não foi a crise
que gerou o arrocho e a pobreza em desfile no planeta --mas sim o arrocho e a
desigualdade neoliberal que conduziram ao desfecho explosivo, edulcorado agora
por vulgarizadores que, no Brasil, advogam dobrar a aposta no
veneno.
A ordem dos fatores altera a agenda futuro.
Se a crise não
é apenas financeira, controlar as finanças desreguladas é só um pedaço do
caminho.
O percurso inteiro inclui controlar a redistribuição do
excedente econômico, ferozmente concentrado nas últimas décadas na base do morde
e assopra --arrocho de um lado, crédito e endividamento suicida do
outro.
O saldo está exposto no cemitério de ossos da crise
mundial.
Genocídio do emprego, classe média em espiral descendente,
mercados atrofiados, plantas industriais carcomidas, anemia do investimento e
colapso dos serviços público e do investimento estatal.
Para quem acha
que a coisa começou agora, o insuspeito Wal Street Journal acaba de publicar
reportagem com números pedagógicos sobre o esmagamento da classe média no mundo
rico, antes da crise.
Dados compilados por Emmanuel Saez, da Universidade
da Califórnia em Berkeley, e Thomas Piketty, da Escola de Economia de Paris’,
diz o Wall Street corroboram o desmonte social em curso nos países
ricos.
Em 2012, os 10% mais ricos da população norte-americana ficaram
com metade de toda a renda gerada no país. Trata-se do percentual mais alto
desde 1917.
Mas o ovo regressivo vem sendo chocado bem antes
disso.
Estatísticas coligidas por Branko Milanovic, ex-economista do
Banco Mundial , adverte o Wall Street, mostram que, de 1988 a 2008, a renda
real dos 50% mais pobres nos EUA cresceu apenas 23%. Enquanto isso, a renda do
1% dos americanos no topo da pirâmide cresceu 113% no período –‘ um percentual
que outros estudos consideram subestimado’, lembra o jornal conservador. As
famílias dos 50% mais pobres na Alemanha e no Japão tiveram um desempenho ainda
pior. A renda real dos 50% mais pobres no Japão caiu 2% em termos
reais.
“As desigualdades nacionais em quase todos os lugares, exceto na
América Latina, aumentaram", diz Milanovic ao Wall Street.
Pela
ansiedade dos nossos falcões e a animosidade de seus gabolas no debate das
questões nacionais, tudo indica que eles não querem ficar para trás.
Ao
ouvirem notícias encorajadoras sobre o potencial do país desabafam
enfadados:
‘Brasil? Poupe-me...’
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