http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/03/1o-de-abril-militares-que-resistiram-ao-golpe-de-1964-relembram-perseguicao/
Rio de Janeiro – Esquecidas durante décadas, as histórias de
militares vítimas da ditadura (1964-1985) finalmente começam a aflorar. Seja
pelas mãos da Comissão Nacional da Verdade, seja pela mobilização dos
integrantes das Forças Armadas cassados pelo regime, um dos lados esquecidos dos
anos de chumbo ganha rosto e forma.
Ao longo do governo autoritário,
oficialmente, estima-se que tenham morrido 357 pessoas, mas familiares de
vítimas afirmam que esse número chega a 426, e que pode aumentar em decorrência
das investigações da Comissão da Verdade (CNV), instituída em maio de 2012.
Nesse balanço, falta contabilizar opositores presos, torturados e
aqueles que foram obrigados a se exilar. Essa história, porém, não estará
completa se não registrar membros das Forças Armadas que resistiram ao golpe e
se recusaram a obedecer ordens de seus superiores. Considerados subversivos,
foram demitidos e, em alguns casos, perseguidos.
Com a finalidade de
apurar denúncias, a Comissão da Verdade criou o Grupo de Trabalho Perseguição a
Militares. A equipe foi criada em outubro de 2012, após a tomada de depoimento
do brigadeiro da Aeronáutica Rui Moreira Lima, preso três vezes durante o
regime. O grupo, liderado pelo pesquisador Cláudio Fonteles, prepara um trabalho
grande sobre o tema, que será apresentado em abril.
Enquanto isso não
ocorre, sobram histórias de militares que, assumindo uma postura totalmente
contrária à dos golpistas de 1964, não se sujeitaram ao descumprimento da
legalidade, às torturas e às mortes. No ano passado, a RBA recordou, no
aniversário da derrubada do presidente constitucional João Goulart, a herança
viva do regime, em uma série de reportagens que seguem atuais (sugere-se a
leitura no box abaixo). Agora, aproveita a ocasião para dar voz àqueles que,
depois de 49 anos, relembram o preço que tiveram de pagar por não aderir ao
golpe. Nos próximos dias, serão cinco histórias. A começar pela de Paulo
Henrique Ferro Costa, o homem “de sorte” que viu a “face da morte” e
escapou.
Um homem de sorte
“Eu posso dizer que eu vi a face da
morte. Aquela sala escura... Naquelas paredes, estava impregnado o grito de
sangue de todos os torturados. E eu vi a face da morte ali. Eu me preparei para
morrer. É horrível você morrer quando a natureza não programou aquele dia pra
você”. Assim prossegue o relato de Paulo Henrique Ferro Costa, um dos membros da
Marinha brasileira que resistiu ao golpe. Hoje aposentado, recebe a reportagem
da RBA em sua casa em Niterói, rodeado por documentos. Solícito, tem a fala
tranquila, com uma voz quase inaudível, sorrindo timidamente enquanto
fala.
Conta, com riqueza de detalhes, diversos momentos de sua vida até
que, por um instante, seus olhos azuis se desviam. Ele olha para frente, e a
parede de sua sala parece levá-lo para as dependências do quartel da Polícia do
Exército, na rua Barão de Mesquita, zona norte do Rio de Janeiro. Ali ele esteve
durante sua última prisão, no mês de maio de 1970 – a mais dura, conta.
“Vivia com uma menina que se envolveu na luta armada. Eu não aprovava.
Eles iam prendê-la. Em um golpe de sorte, ela conseguiu escapar. E eles me
prenderam na suposição de que eu soubesse onde ela estava. Eles me torturaram
barbaramente”, conta. “Ela conseguiu escapar. Felizmente”, conclui, aliviado.
Natural de Belém do Pará, Ferro Costa havia terminado a Escola Naval em
1961 e era segundo-tenente em 1964. Não concordava com o golpe, nem com a
ditadura. Afirma ter entrado na Marinha por convicção “de luta contra o
fascismo”, com intuito de ajudar o Brasil e também de ter uma boa profissão. “Eu
não entrei para dar golpe”, diz.
Ferro Costa estava fazendo uma viagem
de férias entre 31 de março e 1° de abril. A Marinha convocou a ele e outros que
não haviam se apresentado imediatamente após o golpe. Ele conta que exercia
papel de liderança junto aos marinheiros à época e tinha esperanças de uma
possível resistência tanto por parte do presidente João Goulart, quanto de
dentro das próprias Forças Armadas. “Dentro da Marinha, tivemos controle total.
A esquadra toda estava nas nossas mãos, dos legalistas. Mesmo a cúpula militar
sendo golpista, os navios não podiam sair porque os marinheiros não deixavam. Os
oficiais que estavam no gabinete davam as ordens e a gente tinha o controle
total, absoluto. O que aconteceu foi que o Jango não quis o enfrentamento. Ficou
com receio de que essas coisas tivessem desdobramento”, afirma.
Em 12 de
abril de 1964, foi levado ao Princesa Leopoldina, um transatlântico que manteve
presos oficiais da Marinha, da Aeronáutica e do Exército. “Antes fui à casa de
alguns colegas. Disse 'você sabe que estou me apresentando, se acontecer alguma
coisa comigo, você sabe onde foi, quem foi'”. Era a primeira vez que ele entrava
em um transatlântico. “As condições do navio eram suportáveis. A tortura eu não
tive nos primeiros anos. Eu tive conhecimento dela em toda sua extensão no
quartel da Barão de Mesquita.”
O próximo ato foi sua demissão da Marinha,
em 19 de agosto. “Fui considerado morto, então, não tinha certidão de serviço
militar. O decreto, inclusive, me considera morto”, diz, mostrando uma cópia do
decreto expedido pelo Ministério da Marinha.
Foi preso novamente em 1965
e então condenado a cumprir 730 dias de prisão. Como já tinha ficado 257 dias na
cadeia – 14 a mais do que o equivalente a um terço de sua pena –, foi solto.
“Foi montado um inquérito contra mim, mas eles não tinham provas. Colocaram lá
um rapaz que não era da Marinha, que não tinha o curso da Escola Naval. E ele
faz um depoimento contra mim, dizia que eu o havia convidado para participar de
um plano de comunicação da Marinha, cujo primeiro item era a sublevação dos
marinheiros e o segundo item era a chacina dos oficiais. Gravíssimo. Mas eu não
o conhecia, ele montou essa história”, lembra, segurando nas mãos a cópia de
quatro folhas de papel pautado, com um depoimento escrito à mão, sem assinatura.
Ficou em liberdade até 1970, quando foi levado para o quartel da Barão
de Mesquita, um dos maiores centros de detenção clandestina da ditadura. Foi lá
onde morreu o deputado Rubens Paiva, segundo concluiu recentemente a Comissão da
Verdade. Ferro Costa atribui sua sobrevivência à sorte. “Quando eu estava preso,
depois de ser torturado, chamaram um oficial da comunidade de informação da
Marinha. Por sorte, esse oficial tinha sido meu comandante no Colégio Naval. Ele
me viu, me olhou... E eu disse: 'Olha, o curso que eu tenho é o mesmo que você
tem, e eu não estudei no Colégio Naval para passar por isso'. E ele disse: 'Vou
te tirar daqui'. E tirou”.
Sua saída foi dramática. Ficou por mais de
duas horas algemado no porta-malas de um furgão, rodando pela cidade, tentando
respirar através de uma passagem de ar muito pequena. “Fiquei me desidratando.
Quase desmaio ali.” Depois, ficou em uma prisão no Ministério da Marinha, em
uma cela de 4 palmos por 11. “Não tinha água. Sabe esses sanitários que você tem
aquele deposito de água para dar descarga? É dali que você tirava água para
beber.”
Depois de uma semana, foi para a Base Naval da Ilha das Flores
até que, mais uma vez, a sorte o favoreceu. “Minha família estava me procurando
naquela angústia, porque as pessoas sumiam e ninguém sabia”. Foi quando seu pai
telefonou ao Dops e, por coincidência, conversou com um general com quem havia
servido o Exército e que era encarregado de seu inquérito. “E ele diz pro meu
pai: 'Seu filho vai sair amanhã'. Sou um homem de sorte. Estou vivo mais por
sorte do que por outra coisa.”
Questionado sobre sequelas físicas, ele
responde que não as teve, mas conta que jamais conseguiu esquecer aquele
período. “Dizem que a memória deleta a dor, mas a memória não deleta a dor da
tortura. Ela permanece com a pessoa até a morte. É muito difícil você esquecer o
que você passou lá.”
Ferro Costa já foi chamado de comunista inúmeras
vezes. Nega ter tido qualquer ligação com grupos de resistência à ditadura. “Eu
tinha leituras”, resume. Entre seus autores, estavam Darcy Ribeiro, Celso
Furtado. Se lia Marx? “Todo mundo lia. Era uma efervescência incrível”,
responde. “Mas o que me influenciava mais era [Franz] Kafka, [Jean-Paulo]
Sartre.”
Não tão otimista em relação à Comissão da Verdade, acredita na
necessidade apurar casos de prisões arbitrárias e torturas, mas principalmente
de se aprofundar no contexto histórico do Brasil na década de 1960. “A Comissão
da Verdade vai apurar casos emblemáticos, como o do Rubens Paiva, do Herzog. Mas
e o enredo do golpe? É fundamental, que não havia possibilidade de se implantar
no Brasil um regime comunista, que muita gente honesta foi
perseguida.”
Essa avaliação que se faz, para Ferro Costa, se deve em
parte ao modo como ocorreu o fim do regime. Segundo ele, o ato se resumiu a um
acordo. A anistia, em sua opinião, veio tarde.
Depois de sair de sua
última prisão em 1970, exilou-se em Paris. Voltou no final dos anos 1970, quando
já se discutia a anistia – nome que ele critica, preferindo usar “reparação”.
Fez três concursos e foi aprovado. Sua primeira opção era a Eletronorte. Seu
passado fichado, no entanto, impediu que ele assumisse o cargo. Acabou indo para
a Fundação Educacional, em Brasília.
“O que é mais grave é que a minha
geração cristalizou essa verdade, de que os comunistas eram os verdadeiros
inimigos do Brasil, e não a miséria e o atraso. Às vezes, eu vou em reunião de
turma e parece que estou em uma reunião dos republicanos do Tea Party!”,
conclui.
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